Em 2022, o Estatuto do Idoso celebra 18 anos no Brasil, assegurando “todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, todas as oportunidades e facilidades, para preservação de sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade” para 37,7 milhões de pessoas com 60 anos ou mais da população, de acordo com o Art. 2º. Na prática, porém, há velhices invisibilizadas e negligenciadas pela sociedade e pelo poder público, caso das velhices LGBTQIA+, sigla para lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros/travestis, queer, intersexuais e assexuais.
“O primeiro ponto dessas dificuldades encontradas se refere ao suporte social que apresentam, aspecto fundamental no seguimento e proteção de pessoas idosas. Como muitos tiveram que viver à margem da sociedade, ou foram obrigados a romper com suas famílias biológicas para serem quem são, apresentam maiores chances de não serem casados, de não terem filhos, de morarem sozinhos e de não apresentarem ninguém para chamar em caso de emergências”, aponta o médico geriatra Milton Crenitte, coordenador do Ambulatório de Sexualidade da Pessoa Idosa do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) e professor do curso de Medicina da Universidade de São Caetano do Sul.
Somam-se também diversos outros aspectos sociais e culturais nesse cenário cujos dados demográficos não foram oficialmente levantados. “Grande parte do que podemos afirmar sobre as condições de vida das pessoas LGBT+ resultam unicamente de observações, impressões pessoais e de relatos de terceiros, que, apesar de verdadeiros em sua essência, carecem de confirmação estatística robusta, capaz de dar sustentação a tão necessárias políticas e ações públicas de proteção e amparo a esse segmento da população”, destaca a psicanalista Letícia Lanz, especialista em Gênero e Sexualidade pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Neste Em Pauta, Crenitte e Lanz refletem sobre o tema.
“Todos nós nascemos gente, o resto são rótulos. […] Que venha o que tiver que vir. Não coloco nas mãos de nada nem de ninguém o meu destino. Minha vida é só minha e só eu morrerei com ela.” (NERY, 2019, p. 172)
João Nery faleceu, aos 68 anos, dois dias após escrever a última página de seu livro Velhice Transviada (Objetiva), em 2018. Foi um importante ativista pelos direitos humanos e o primeiro brasileiro reconhecidamente a realizar uma cirurgia de redesignação sexual em 1977. Inspirou e batalhou para que o envelhecimento fosse um direito de todes. Entretanto, ainda há muito pelo que pleitear.
Infelizmente, a invisibilidade das velhices LGBTQIA+ é uma realidade. Sofrem ao resistir à hetero-cis-normatividade e ao enfrentar o estigma do envelhecimento em uma sociedade gerontofóbica, a qual valoriza aspectos relacionados ao corpo jovem e à juventude. Por isso, alguns estudiosos já relatam que a carga de discriminação com a qual convivem é no mínimo dupla, sem contar outras camadas de opressão baseadas no racismo e na exclusão social.
Intolerância que fere fisicamente, psicologicamente, e que também mata, visto que muitas pessoas da comunidade LGBTQIA+, especialmente mulheres trans e travestis, morrem violentamente antes de chegarem à velhice (no Brasil, por lei, é considerada idosa a pessoa com 60 anos ou mais). Já os que conseguem ultrapassar a marca dos 50 anos, precisam enfrentar as diversas faces da violência contra a pessoa idosa: física, psicológica, sexual, financeira, por negligência ou institucional. O que se especula é que estariam sob um maior risco de ocorrência desses fenômenos e ao mesmo tempo com as menores chances de denunciarem para as autoridades sanitárias ou policiais.
Além disso, todas essas construções socioculturais apresentam consequências sérias no acesso, na promoção da saúde, no acompanhamento de doenças complexas e no fim de suas vidas, prejudicando possibilidades de alcançarem um envelhecimento ativo e bem-sucedido.
O primeiro ponto dessas dificuldades encontradas se refere ao suporte social que apresentam, aspecto fundamental no seguimento e proteção de pessoas idosas. Como muitos tiveram que viver à margem da sociedade ou foram obrigados a romper com suas famílias biológicas para serem quem são, apresentam maiores chances de não serem casados, de não terem filhos, de morarem sozinhos e de não apresentarem ninguém para chamar em caso de emergências.
Outro aspecto nesse debate é o acesso desigual aos serviços e unidades de saúde. O medo de sofrer discriminação ou até mesmo experiências prévias negativas nesses locais fazem com que evitem procurar ajuda ou façam apenas em casos de emergência, exemplificando o porquê de mulheres cis lésbicas realizarem menos exames preventivos, como mamografia ou papanicolaou, do que suas contemporâneas heterossexuais ou o porquê de pesquisas evidenciarem que o controle de doenças crônicas como diabetes e depressão não é tão bem realizado por essas pessoas.
Até mesmo no fim de suas vidas a discriminação ocorre, dificultando a obtenção de uma morte digna. Dados internacionais mostram que essas pessoas apresentam mais medo de morrerem sozinhas, com dor ou vítimas de preconceito nessa fase da vida, em comparação com seus contemporâneos heterossexuais e cisgênero.
Essa realidade pode ser até mais desafiadora em instituições de longa permanência para idosos, antigamente conhecidas como “casas de repouso”, onde o respeito à individualidade e à diversidade não são regra, e sim exceção. Lamentavelmente alguns desses locais ainda precisam avançar sobre um tabu antigo que já superamos: o de que pessoas idosas seriam assexuadas, para posteriormente avançar sobre o mito de que todas as velhices seriam heterossexuais e cisgênero.
Nesse contexto, algumas pessoas defendem que esse debate não deveria ser realizado, uma vez que isso poderia aumentar o preconceito ou porque a sociedade não estaria preparada para tal. Porém, durante toda a sua vida, João Nery evidenciou o contrário. Deu exemplos e voz a pessoas brutalmente silenciadas e não teve medo de nomear diferenças e de denunciar injustiças, a fim de reduzir as desigualdades sociais que perversamente marcam os locais que ocupamos na sociedade.
Ademais, já existem algumas políticas públicas voltadas para o reconhecimento da orientação sexual e do gênero como determinantes sociais do processo saúde-doença. O que precisamos é garantir a real aplicação de leis já existentes, ocupando e transformando a realidade da macropolítica e também da micropolítica das unidades de saúde, garantindo assim um acesso à saúde sem desigualdades.
Por fim, espaços de debate para rompermos com a invisibilidade das velhices LGBTQIA+ são indispensáveis. Existem vulnerabilidades e diferenças em cada um de nós. Mas se não pararmos para conhecer, nomear e entender tais desigualdades e injustiças, será muito difícil construir uma sociedade mais justa e acolhedora para todes.
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Começando pela imprecisão do que convencionamos chamar de velhice, é uma tarefa desafiadora descrever, com alguma propriedade, o estado das velhices LGBT+ no Brasil de hoje, assim como fazer projeções da sua condição futura em nosso país. Nem a velhice pode ser considerada uma fase específica e bem delimitada da vida humana, como praticamente nada se sabe, de maneira concreta, com o mínimo de sustentação estatística, quanto às reais condições de vida desse segmento da população. Até agora, houve uma omissão deliberada e um descaso total dos órgãos estatísticos governamentais das três esferas em incluir nos seus levantamentos mesmo as questões mais elementares sobre orientação sexual e identidade de gênero da população brasileira. De modo que não temos ideia exata nem ao menos de quantas pessoas LGBT+ existem no país, como tampouco sabemos como se distribuem em termos de sexo, idade, escolaridade e renda.
Grande parte do que podemos afirmar sobre as condições de vida das pessoas LGBT+ resultam unicamente de observações e impressões pessoais e de relatos de terceiros, que, apesar de verdadeiros em sua essência, carecem de confirmação estatística robusta, capaz de dar sustentação a tão necessárias políticas e ações públicas de proteção e amparo a esse segmento da população.
A velhice não é a mesma nem chega na mesma época para toda e qualquer pessoa, não podendo, portanto, ser entendida como uma fase única e específica na vida de todos os indivíduos, determinada por rígidas ocorrências biológicas e sociais. Pelo contrário, a velhice deve ser vista como um processo marcadamente pessoal, dentro da realidade específica em que cada pessoa envelhece. Uma travesti de 40 anos já pode ser considerada velha, tendo em vista que a média de sobrevivência nessa categoria identitária não passa dos 35 anos, como constam das poucas estatísticas disponíveis. Simplificadamente, para efeito deste texto, chamarei de velhice o período de vida de uma pessoa que, convencionalmente, no Brasil, para diversos tipos de efeitos jurídicos e práticos, se inicia aos 60 anos.
Mesmo diante dos importantes avanços e conquistas dos últimos 30 anos, das formas de orientação sexual não heterossexuais, assim como das identidades de gênero fora do binário oficial masculino-feminino, em pleno século 21, a população LGBT+ não só continua sendo tratada de maneira reacionária, preconceituosa, desrespeitosa e/ou violenta, como esses expedientes têm se intensificado de maneira significativa nos últimos tempos. Embora o estigma paire sobre toda a população LGBT+, independentemente de idade, gênero, raça e classe social, seus efeitos cruéis são sentidos com muito maior intensidade nos seus segmentos mais vulneráveis – pessoas LGBT+ pobres, pretas, periféricas, portadoras de necessidades especiais – e, naturalmente, “velhices LGBT+”.
Nesse segmento, o estigma da velhice, que já tem um peso exorbitante na nossa sociedade, se une ao peso do estigma das sexualidades não heterossexuais e das identidades de gênero fora do binário masculino-feminino para produzir um quadro de ampla marginalização, abandono e exclusão das pessoas. Como resultado, consegue ser ainda mais cruel e impiedoso com as velhices LGBT+. A cis-heterossexualidade institucionalizada impede que as velhices LGBT+ tenham acesso a serviços de saúde adequados e de qualidade ou usufruam de habitação ou abrigo a preços que caibam nos seus orçamentos.
Muitas velhices LGBT+ voltam para o armário, reforçando o isolamento social e o desamparo social de que são vítimas. Pior ainda: as velhices LGBT+ vivenciam esse isolamento e desamparo social dentro da própria comunidade LGBT+. Em qualquer fase da vida, uma existência plena é aquela que possibilita à pessoa expressar livremente, sem bloqueios nem culpa, todas as dimensões do seu ser, o que inclui naturalmente poder assumir e expressar a sua orientação sexual e a sua identidade de gênero.
A partir de agora, quero apresentar considerações acerca de seis fatores que influenciam radicalmente o bem-estar – assim como o mal-estar – das velhices LGBT+: Solidão e abandono; Indigência financeira; Saúde; Habitação e Redes sociais de proteção.
A solidão é tão devastadora quanto inevitável para a maioria das velhices LGBT+. Pelo estilo de vida independente e solitário que adotam, muitas pessoas LGBT+ não desejam, não conseguem ou não se esforçam para manter relações sexuais e afetivas estáveis com uma mesma pessoa ao longo da vida. Ainda é muito recente a tendência de formação de casais homoafetivos dispostos a constituir famílias duradouras, inclusive com filhos, que fortalecem os vínculos e as responsabilidades do casal. Por sua vez, pessoas transgêneras – travestis e transexuais –, ainda que desejem muito formar famílias, dividindo a vida com outra pessoa, frequentemente se queixam de não encontrar os pares afetivos com quem gostariam de passar o resto dos seus dias. O resultado disso é que grande parte das pessoas LGBT+ reconhece, quase como fato trágico e definitivo, que vai estar sozinha no fim da vida.
Algumas velhices LGBT+ têm a sorte de serem acompanhadas e assistidas por parentes próximos, como irmãs, irmãos, sobrinhas e sobrinhos, mas a maioria não tem ninguém com quem contar. No máximo, poderão recorrer a antigas amizades, que nem sempre estarão disponíveis quando precisarem delas.
Além desses efeitos sociais tão adversos, o isolamento e o abandono em que vivem muitas velhices LGBT+ têm um impacto profundo na sua saúde física e mental. Sentir-se sozinha e vulnerável pode levar à depressão e ao declínio progressivo da saúde física e do bem-estar de uma pessoa, com o agravante de que sair sozinha da solidão é uma barreira quase intransponível para uma pessoa mais velha que se encontra só. Por orgulho, pessoas idosas tendem a não pedir ajuda, achando que devem dar conta sozinhas de tocar suas vidas, ao mesmo tempo que sentem vergonha da própria solidão.
Dinheiro é um tema crucial em todas as fases da vida de qualquer pessoa, que pode se tornar particularmente espinhoso na velhice. Muito mais do que pessoas jovens, pessoas idosas lutam para sobreviver com um orçamento apertado. É preciso fazer malabarismos para fazer caber aumentos sucessivos nas contas de moradia, alimentação, saúde e transporte, sem ter nenhum aumento correspondente nas suas pensões e aposentadorias.
Assim, além de enfrentarem a exclusão, a invisibilização e o abandono, grande parte das velhices LGBT+ sofre de indigência financeira. Embora também seja comum entre jovens LGBT+, devido principalmente à falta de oportunidades que experimentam no mercado de trabalho, essa indigência financeira pode se tornar crônica entre as velhices LGBT+.
Qualquer que seja a faixa etária em que se encontre, é no quesito de saúde física e mental que a população LGBT+ necessita de maior atenção do poder público, por meio da definição e implementação de políticas de acesso amplo a serviços de saúde especializados e de qualidade, planejados e oferecidos de acordo com os recortes raciais, econômicos e educacionais desse público. É, contudo, nas velhices LGBT+ que políticas públicas na área de saúde física e mental se tornam realmente indispensáveis.
É muito grande o número de pessoas LGBT+ que resistem ao máximo a visitar profissionais de saúde. E, sinceramente, têm sérias razões para isso. Nenhuma faculdade de medicina, pelo menos no Brasil, instrui seus alunos em aspectos específicos da conduta médica em caso de pessoas LGBT+. Devido a essa falta de instrução e orientação adequadas das academias quanto aos procedimentos específicos e ao comportamento a ser adotado no atendimento à população LGBT+, muitos têm receios de procurar um médico ou médica e se abrir com ele ou ela, expondo com exatidão as suas condições de vida e os seus sintomas. A expectativa da maioria é de receber uma assistência médica ruim, inadequada e muitas vezes moralista, discriminatória e preconceituosa.
Poder desfrutar de habitação eficiente e segura, algo difícil até para pessoas idosas que têm posses, torna-se uma luta exaustiva e penosa para pessoas idosas pobres, podendo ser ainda mais cruel e desesperadora para as velhices LGBT+. As casas, na sua maioria, não são sequer preparadas para as limitações de movimento das pessoas idosas e as famílias, na sua maioria, cuidam das suas velhices sem nenhuma vontade ou preparo, de modo quase sempre improvisado e precário. Os poderes públicos não disponibilizam instituições de longa permanência públicas adequadas, em qualidade e quantidade, para acolhimento de pessoas idosas carentes, restrição que piora significativamente quando se trata de velhices LGBT+.
Constantemente, velhices LGBT+ reportam o descaso, o abandono e até o repúdio com que são recebidas e tratadas em instituições de longa permanência públicas, da mesma forma que é comum reportarem dificuldades e interdições para alugarem quartos e imóveis. Mesmo tendo recursos, ainda é muito comum o preconceito e a discriminação de senhorios e da vizinhança com relação a pessoas LGBT+.
Rede de proteção é o conjunto de pessoas, profissionais e instituições públicas e privadas interagindo e atuando a maior parte do tempo de modo virtual (especialmente nesses tempos de pandemia) para garantia de direitos, acolhimento e amparo a grupos identitários e segmentos sociais específicos. Com todas as limitações, equívocos e engodos possíveis, a internet inaugurou uma era de “redes virtuais de proteção”. Minorias socialmente estigmatizadas e discriminadas, como é o caso das velhices LGBT+, têm nessas novas redes sociais virtuais um aliado fortíssimo não apenas no resgate e na defesa dos seus direitos, mas também na formação de grupos de apoio, proteção e convivência. De uma forma ou de outra, é necessário cultivar essas novas redes, sem abrir mão das antigas, formadas por companheiros e companheiras de convívio mais próximo dentro do gueto LGBT+.
Indiscutivelmente, o futuro das velhices LGBT+ no Brasil é inseparável do futuro de todos os demais segmentos da população LGBT+. Mas, assim como a população do país está envelhecendo a olhos vistos, a parcela de pessoas LGBT+ idosas continuará aumentando substancialmente daqui para a frente, fazendo com que a luta por um tratamento digno e respeitoso às velhices LGBT+ constitua uma das frentes mais relevantes de atuação do movimento LGBT+ nos próximos anos.
A edição de março/22 da Revista E está no ar!
Nas páginas deste mês, você conhece o projeto “Infindável Viagem: Takeo Sawada – artista, educador” (imagem de capa), composto por ações no Sesc Thermas de Presidente Prudente e no Sesc TV.
Além disso, a revista de março traz outros destaques, como a exposição “DARWIN, O ORIGINAL”, do Sesc Itaquera; um levantamento que, no mês da mulher, apresenta as ruas da capital paulista que homenageiam personalidades femininas; um depoimento dos jornalistas Tatiana Vasconcellos e Nando Andrade sobre sua rotina no rádio; um perfil da diva Elza Soares (1930-2022); uma reportagem sobre iniciativas que mostram a força de uma economia baseada na solidariedade e na coletividade; um passeio pelas ilustrações criadas para o experimento literário Folhetim, do Sesc Pompeia; uma entrevista com o economista Marcio Pochmann sobre modelos econômicos e o futuro da sociedade; e artigos que abordam os desafios do envelhecimento das pessoas LGBTQIA+.
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