Por Hermínio Bello de Carvalho*
Claro, deveria começar falando de Nana, da nossa longa conversa ao telefone para comentar este trabalho. Eu tinha varado a noite ouvindo e reouvindo a prova do CD sob o sob o maior encantamento e também, por que não confessar? – contaminado pela emoção que a arte de Nana Caymmi sempre provoca em mim.
Não, não é a primeira vez que ouvimos um trabalho abordando a parceria Tom e Vinicius: ela foi rascunhada em 1956 com a peça “Orfeu da Conceição”, e iria solidificar-se com o icônico e conceitual “Canção do amor demais”, com Elizeth Cardoso e arranjos de Tom Jobim – gravado em 1958 e editado no sêlo Festa, criado pelo jornalista Irineu Garcia. Pronto. Estava ali um clássico da discografia brasileira, que não apenas solidificou a parceria Tom-Vinicius, como também revelou, em duas faixas daquele LP, um violão que seria, logo depois, uma espécie de logomarca do movimento bossa-nova. Estamos falando, é claro, de João Gilberto. É bom também não esquecer do “Por toda a minha vida”, de 1959, com Lenita Bruno e arranjos de Leo Peracchi.
“Prazer em conhecê-lo”, “o prazer é todo meu”. Imagino que terá sido mais ou menos assim, quando Tom e Vinicius foram formalmente apresentados um ao outro pelo pesquisador Lucio Rangel. O ano? Mais ou menos 1956 – e o bar Villarino foi o cenário desse encontro. Reza a lenda que Tom e Vinicius se esbarraram em ocasiões anteriores – mas tudo não teria passado de acenos na base do “Olá, como vai?”, “Eu vou indo, e você?” – como no samba de Paulinho da Viola. Voltemos ao Villarino, e vale uma contextualização: O bar, em frente à Academia Brasileira de Letras, Rio de Janeiro, tinha uma clientela variada: Fernando Lobo, Antonio Maria, Aracy de Almeida, Di Cavalcanti, Tonia Carrero, Dorival Caymmi, Dolores Duran, Elizeth Cardoso, Vinicius de Moraes, Sergio Porto, Lucio Rangel, Haroldo Barbosa, Eneida, Ligia Clark. “Muitos eram frequentadores certos, e outros passavam em vôos rápido” – informa Fernando Lobo em seu livro “À mesa do Vilariño”. Mas que não se esqueça a vez em que Pablo Neruda lá esteve, na companhia de Manuel Bandeira. A parede do fundo do Vilariño foi, aos poucos, sendo transformada num majestoso painel. Nele, Pancetti deixou gravada sua arte, e Ari Barroso traçou um pentagrama e rascunhou um trecho da “Aquarela do Brasil”. E havia, além disso, trechos de canções e poemas e sei lá o que mais. Pena que aquela parede não tenha sido tombada pelo IPHAN. Porque, um dia, o dono do bar, imaginando agradar a sua freguesia, apagou aquela memorabilia com vigorosos demãos de tinta. O resultado, para ele inesperado, foi a debandada geral de sua clientela, ora se!
Ouço o disco pela enésima vez, e sinto que faltou escrever alguma coisa sobre Dori Caymmi. Há muitos e muitos anos acompanho sua carreira de compositor e arranjador – e que belos caminhos percorreu!
Em 1964, vamos encontrá-lo como diretor musical do show “Opinião” também do “Arena conta Zumbi”, “Calabar” e “Gota d’água”. Em 1966, ele e Nelson Motta – ambos com 22 anos, concorrem ao I FIC – Festival da Canção – com a belíssima “Saveiros”, defendida por Nana. E lá estou eu atuando como jurado, na companhia de Chico Buarque, Roberto Menescal, Mozart Araujo e Almirante – foi uma noite emocionante.
Em 1989 Dori foi trabalhar em Los Angeles – onde viverá por 27 anos. Da discografia produzida na fase americana, o destaque é o álbum “Brasilian serenata”, produzido pelo selo Qwest, do maestro norte-americano Quincy Jones. Outro destaque de sua fase americana é o arranjo que faz para “Aquarela do Brasil”, gravado por ele – com participação do pianista Herbie Hancock – no CD “Kicking cans“, de 1993. Entre os artistas com que trabalhou nos EUA estão James Taylor, Dione Warwick e Wayne Shorter. Mesmo à distância, continuou compondo com o grande letrista Paulo Cesar Pinheiro – seu parceiro mais constante.
Não há muito mais o que falar sobre esse trabalho, a não ser que as cordas foram gravadas pela Orquestra de Saint-Petersburg, na Rússia, e as bases no Estúdio Cia dos Técnicos, em 15 a 18 de abril de 2019, e nelas vamos contar com alguns dos melhores instrumentistas brasileiros, a saber: violão, Dori Caymmi; baixo, Jorge Helder; bateria, Jurim Moreira e piano, Itamar Assiere.
Deve-se render homenagens ao Sesc São Paulo, que viabilizou a produção deste projeto, que contou com a competente produção executiva de Guto Burgos.
E não esquecer que essas canções, algumas compostas há mais de 60 anos, continuam imperecíveis. Louve-se Tom e Vinicius, artesãos de toda essa magia, e à Nana Caymmi – que nos devolve essas obras com um toque majestoso de eternidade.
Mas voltemos a Nana: para melhor entendê-la, não podemos deixar de lado sua paixão pelos impressionistas, sobretudo Debussy e Ravel – paixão que dedica também à opera. Lembro, aliás, o dia em que recebi a visita de minha uirapuru, Maria Lucia Godoy que, a horas tantas, abriu a gaiola e soltou a voz, voz de sabiá, que ficou ecoando pelo prédio inteiro. Por casualidade, Nana visitava um vizinho meu e, ao escutar a cantoria, proclamou: “é ao vivo! e em cores! – fui!”, e ei-la adentrando em meu apartamento e logo fazendo duo com La Godoy – que dia inesquecível!
*Hermínio Bello de Carvalho é compositor, poeta e produtor musical brasileiro.
Ouça agora “Nana, Tom, Vinicius” com exclusividade no Sesc Digital
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