Rubens Rufino é economista, pai da Melina e do Marcelo, avô da Dora, filho único – e muito orgulhoso – de Lélia Gonzalez. Um sentimento que transcende a relação familiar, centrando na consciência da grandiosidade do ideal levantado pela pensadora e das renúncias que isso lhe custou: “Ela abriu mão das suas coisas pessoais pela luta de um povo, do povo negro. E isso é o que mais nos orgulha”. Hoje, ele vem se dedicando à missão de formalizar o Instituto Memorial Lélia Gonzalez e a tocar o projeto Lelia Gonzalez Vive.
“INTELIGENTE, MAS PRETINHA”.
Com essa frase e um tom de ironia na voz, Rubens conta a forma como sua mãe era vista pelos colegas da escola e mesmo da universidade, quase todos brancos. Vinda de uma família muito simples, Lélia teve o apoio da mãe para trilhar uma história diferente da dos seus irmãos. Batalhou muito para estudar e desde jovem se tornou a melhor aluna da sala.
Rubens destaca essa dedicação ao estudo como uma característica fundamental de sua personalidade por toda a vida. Incansável, ela ia a fundo em todas as questões que levantava, estudando temas como psicanálise e linguística, além de ir a campo, como em sua viagem para a África, onde buscou se aprofundar nas religiões de matriz africana. Isso tudo sendo sempre contestada: “Ela era criticada, no sentido de estar inventando moda, de ser a chata…”, relembra. “Quando ela levantava uma questão, ela tinha conhecimento de causa, ela podia falar. Inclusive eu tenho algumas diferenças com a Academia, porque ela não produz conhecimento e se apropria do conhecimento produzido por terceiros. Lélia não. Ela produziu conhecimento e contextualizou esse conhecimento”.
MÃE E ATIVISTA
Lélia trabalhava muito. No meio da rotina agitada, Rubens lembra com carinho dos cafés da manhã que tomavam juntos aos domingos, acompanhados da leitura de jornais e dos debates sobre diferentes situações. Conversas que lhe proporcionaram, entre muitas outras coisas, a consciência de que eles eram pretos, e de tudo mais que isso significava: “Tudo que nós temos hoje, principalmente do povo negro, foi através de uma luta muito desigual, muito cruel, que os nossos antepassados passaram. Eles foram trazidos de uma terra onde eles eram reis, rainhas, príncipes, princesas, pra serem escravizados aqui no Brasil”. Mas os cafés eram apenas uma parte da troca que existia entre os dois.
As reuniões do Movimento Negro Unificado ocorriam na casa em que moravam, no Cosme Velho, bairro do Rio de Janeiro. “Eu era um bom datilógrafo e a maioria dos textos, manifestos do Movimento Negro, era eu quem batia. Então eu tinha oportunidade de conversar com ela, ouvir as conversas, as reuniões, não só do Movimento Negro, mas do movimento de mulheres negras que também aconteciam lá em casa”, conta.
Notívaga, Lélia virava noites escrevendo. Quando Rubens acordava, sentava-se à máquina de escrever e passava a limpo tudo o que a mãe havia redigido durante a madrugada: “O livro Lugar de Negro eu posso dizer que todo ele eu datilografei”, relembra.
Nos anos 1970, período de ditadura no Brasil… Uma professora universitária e outros pretos se reunindo em uma casa. Essa mistura deixou os olhos e os ouvidos do Regime Militar atentos: “Às vezes eu estava fazendo uma ligação banal, com um colega meu, conversando besteira, e no final quando a pessoa desligava e o fone ainda estava no ouvido, às vezes você escutava um “clec”. Quer dizer, estava sendo ouvido, estava sendo gravado”.
A repressão institucional também foi uma das batalhas enfrentas por Lélia. Em 1964 teve que esconder alguns livros taxados como comunistas na casa de uma irmã para evitar que em uma eventual batida policial eles fossem encontrados. Também houve um período em que um diretor do DOPS – Departamento de Ordem Política e Social, órgão que foi palco de torturas contra presos políticos – morava no mesmo prédio em que Lélia e o filho viviam, no bairro da Tijuca, fazendo um clima de ameaça constante pairar no ar.
“Lélia é uma guerreira no sentido amplo da palavra. Ela foi uma mulher que contestou o movimento feminista, ela contestou o movimento negro; o movimento feminista, em sua maioria formada por brancas, que não levava a questão da mulher negra. E dentro do próprio movimento negro, os homens negros também não levavam a questão da mulher negra”, destaca. “Sem contar a sensibilidade dela, a espiritualidade dela. Eu acho que ela tinha uma missão mesmo. Ela veio pra cá nesse plano que a gente vive, pra isso”.
ARTICULAÇÃO E PRESERVAÇÃO DE UM LEGADO
Para o filho da pensadora, a articulação com instituições e grupos organizados da sociedade civil tem um papel fundamental na amplificação das ideias de Lélia. Já tem sido feito um trabalho intenso de relacionamento com organizações engajadas nessa causa, e o desejo é de intensificar ainda mais essas parcerias com a formalização do Instituto Memorial, buscando parcerias pra o desenvolvimento de todo o trabalho em cima do legado de Lélia Gonzalez. “O que a gente quer é seguir os passos dela, inclusive fora do Brasil”.
E essa caminhada internacional já começou. O livro “Por um feminismo afro-latino-americano” está sendo traduzido na língua espanhola por uma editora argentina. O livro também está ganhando uma versão em inglês, editada por uma universidade norte-americana, com lançamento previsto para 2023. Há textos sendo traduzidos para o francês e movimentações parecidas acontecendo em Cuba e na Alemanha.
A pertinência dessa internacionalização também foi evidenciada pela ativista norte-americana Angela Davis, durante a conferência “A Liberdade é uma Luta Constante“, realizada em outubro de 2019 no Sesc Pinheiros: “Eu acho que eu aprendo mais com Lélia Gonzalez do que vocês aprenderiam comigo. Ela estava escrevendo sobre interseccionalidade antes do termo se tornar vigente”, destacou a pensadora.
Se, por um lado, Lélia foi pioneira em suas análises, por outro, os entraves enfrentados na superação dos problemas sociais apontados por ela fazem com que as questões discutidas em seu trabalho sejam relevantes até hoje: “O que ela escrevia há 40 anos, em 1980, ainda é atual. Eu não gostaria que fosse, eu gostaria que nós tivéssemos passado por isso e hoje estaríamos em outro ciclo, num outro patamar”, afirma Rubens.
Ele reconhece avanços, como por exemplo a política de cotas que proporcionou uma melhor capacitação para muitas pessoas que antes não tinham acesso à universidade e acredita que, apesar do longo caminho a percorrer, o mais importante é saber que já saímos da inércia.
A intenção de levar o legado de Lélia adiante também vai nesse sentido, de fazer essa mensagem chegar principalmente para as crianças e os jovens. “A criança não nasce racista, ela se torna racista. Queremos mostrar que através de estudos, do estudo da história da África, principalmente para as crianças pretas, que é possível, apesar da luta, a gente chegar lá”.
Por isso, ele se coloca à disposição para todos que desejem desenvolver uma ação relacionada à memória de Lélia. É possível entrar em contato pelo perfil do projeto @leliagonzalezvive no Instagram, pela página no Facebook e pelo site da organização Nossa Causa, parceira da família na ação.
4 LIVROS PARA LER E ENTENDER LÉLIA GONZALEZ
Rubens listou as obras publicadas ou em processo de publicação que reúnem quase toda a produção intelectual de Lélia.
Primavera para Rosas Negras
“Em 2018 a União dos Coletivos Pan Africanistas lançou esse livro que é uma coletânea de textos dela”. O livro também conta com depoimentos de Lélia e entrevistas de pessoas que conviveram com a pensadora.
Por um feminismo afro-latino-americano
“Em 2020 a editora Companhia das Letras fez um trabalho muito bom com organização da Flavia Rios e da Marcia Lima, que traz uma coletânea de textos, alguns deles inéditos, ou que não haviam sido traduzidos para o português. Ali você tem quase tudo que ela produziu”.
Obras em processo de publicação, para ficar de olho:
Lugar de Negro
“Em abril vai ser relançado pela Companhia das Letras o livro ‘Lugar de Negro’, que ela fez com Carlos Hasenbalg, que muitos consideram como um marco pro Movimento Negro Unificado”.
Festas Populares do Brasil
“Também está no forno outro livro dela que é o ‘Festas Populares do Brasil’, que a editora Boitempo está preparando pra fazer o lançamento”. Em sua edição original, o livro foi premiado no Brasil, pelo Clube de Criação de São Paulo (1988), e na Alemanha, dentro da Feira Internacional de Leipzig, na categoria “Os mais belos livros do mundo”, (1989).
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Esse conteúdo integra o projeto “Amefricanidade, o caminho das mulheres negras”, que – entre os meses de janeiro e março de 2022 – abordou o conceito de amefricanidade, criado por Lélia Gonzalez, com especial enfoque e abordagem na população negra feminina, por meio de textos, ilustrações, rodas de conversa e cursos.
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