No ano passado, vivemos um momento marcante no que diz respeito à participação das mulheres no esporte com a Copa do Mundo de futebol feminino. Transmitidas por canais abertos e pagos, e também em várias unidades do Sesc São Paulo, as partidas do mundial chegaram a um número muito maior de pessoas em 2019.
Mesmo sem a participação da seleção brasileira na final, foi aqui no país que se registrou a maior audiência da partida no mundo. O entusiasmo, certamente, é um indicativo de que velhas ideias, como a de que futebol é “coisa de homem”, estão ficando para trás em favor de uma perspectiva potencialmente inclusiva.
Mais do que um momento marcante para a história do futebol feminino, o mundial deu visibilidade a temas importantes como as diferenças de salários, propostas e patrocínios disponíveis para homens e mulheres na modalidade.
A menos de seis meses da abertura dos Jogos Olímpicos de Tóquio, no Japão, é retomada a possibilidade de aproveitar os holofotes e colocar em pauta o estado e as nuances da participação feminina, dessa vez, nas diversas modalidades e também no amplo ecossistema do esporte (que inclui outros profissionais, além de atletas).
A EOnline conversou sobre o assunto com a pesquisadora Silvana Goellner, professora titular da Escola Superior de Educação Física da UFRGS e também com as atletas Amanda Rodrigues, 16 anos, jogadora de basquete 3×3, e Tifanny Abreu, 35 anos, jogadora de voleibol, que participaram da programação do Sesc Verão na unidade do Sesc Parque Dom Pedro II.
Legado histórico
Historicamente, a participação das mulheres no esporte foi desencorajada e, em alguns casos, até mesmo proibida por lei. No Brasil, o decreto que instituiu o extinto Conselho Nacional de Desportos, em 1941, proibia que as mulheres praticassem modalidades (sem especificar quais) “incompatíveis com as condições de sua natureza”. “Cada federação poderia dizer o que é que ela considerava como incompatível“, explica Silvana.
Em 1965, o texto desse decreto seria aprofundado a partir de uma deliberação do Conselho que indicava as modalidades proibidas para mulheres: “prática de lutas de qualquer natureza, futebol, futebol de salão, futebol de praia, polo aquático, polo, rugby, halterofilismo e baseball”.
Sem poder competir oficialmente por décadas, jogos comemorativos e beneficentes, além de competições não oficiais em espaços alternativos como os circos, foram algumas das estratégias adotadas pelas mulheres para praticar as modalidades.
Tantos anos de proibição acabaram gerando um gap que ajuda a explicar, por exemplo, porque a proporção de medalhistas mulheres brasileiras ainda é inferior à de homens nos Jogos Olímpicos, mesmo com um número de atletas se aproximando do equilíbrio. “Como é que a gente quer que os Jogos Olímpicos tivessem uma paridade se por quarenta anos várias modalidades foram proibidas?“, questiona Silvana.
Disputa pelos espaços
Outro fator em jogo é a noção que se construiu do lugar ocupado pela mulher na sociedade. “O esporte se dá no espaço público. Então, é uma conquista das mulheres saírem do universo doméstico, que culturalmente foi instituído como seu, em uma análise binária de gêneros: para o homem, o espaço público; para as mulheres o espaço privado“, explica Silvana.
Ainda que as mulheres tenham conquistado o direito à participação nas competições oficiais, no dia a dia, ainda é comum que os espaços esportivos sejam ocupados majoritariamente por homens. “As mulheres estão sempre na periferia nesses espaços. Para elas ocuparem a quadra de futebol da comunidade, elas têm que negociar“, diz Silvana.
Jogadora de basquete pelo Wolf, no Hunters, e pela equipe de São Mateus, Amanda Rodrigues era a única mulher em quadra durante a Copa Sesc Verão de Basquete 3X3 no Sesc Parque Dom Pedro II, no último dia 5 de janeiro. “Acho que a gente não pode ter medo. Temos que acreditar e ter a coragem de chegar em quadra e, em vez de perguntar se podemos, afirmar: nós vamos jogar também!”, defende Amanda.
Consciência de gênero
A conquista de novos espaços está diretamente ligada à discussão de gênero, mas nem sempre essa discussão chegou ao ambiente do esporte – dentre as várias pautas que mobilizaram o movimento feminista ao longo das últimas décadas, o esporte não foi um tema que recebeu tanta atenção.
“Eu já entrevistei várias atletas que disseram: ‘Eu era feminista e não sabia. Eu brigava com dirigente, eu queria o meu espaço. Eu briguei com o meu pai porque eu queria jogar futebol e meu pai dizia que ‘não’, que futebol era coisa do meu irmão. Ele podia, eu não podia.’“, relata Silvana.
“Discutir gênero é pensar nessa equidade, nessa possibilidade de que o esporte seja uma prática cultural de acesso de quem quiser participar – independe de ser homem, mulher, negro, indígena, homossexual, pobre, rico, participar de alguma religião“, complementa.
Para Tifanny Abreu, primeira jogadora transexual na Superliga Feminina de Vôlei, “as batalhas difíceis que estamos lutando agora vão abrir caminho para que elas colham frutos de um esporte mais adequado, percebido com a importância que tem, até pelo poder público, para que elas possam treinar e ao mesmo tempo cuidarem de suas famílias. Torço para que, assim como nós, elas não desistam e que, no futuro possamos ter um país muito mais receptivo e adequado para o esporte feminino”.
Além das quadras
“A gente comemora o [crescimento do] número de atletas [mulheres], mas e as dirigentes, as treinadoras, as jornalistas, as narradoras, as árbitras?”, questiona Silvana Goellner, “Pensa nas várias dimensões que o esporte envolve. Elas ainda estão muito atrás“.
A maior participação de atletas olímpicas na delegação brasileira não deve encobrir as ainda desiguais condições de acesso e nem as disparidades profundas de distribuição de cargos no ecossistema mais amplo do esporte, que inclui muitos outros profissionais.
“É só olhar o desfile de abertura dos Jogos Olímpicos“, lembra Silvana. “São homens que estão no comando. Então, as mulheres têm ainda uma dificuldade muito grande de acesso. Geralmente, elas estão mais vinculadas com as categorias de base, elas estão em cargos secundários, mas elas não são aquelas que ocupam o protagonismo na gestão e nos cargos técnicos.“
“As instituições oficiais – FIFA, COB, COI, as federações esportivas –, pensando também como instituição oficial, os próprios programas de políticas públicas dos governos, a mídia tradicional – estou pensando ela como uma instituição oficial –, elas têm muita dificuldade de aceitar o protagonismo das mulheres”, afirma Silvana. “Parece que as mulheres incomodam. Tanto é que [surgiram] uma série de movimentos: #DeixaElaTrabalhar, Nenhuma Mulher a Menos, Não é Não. Então, tem uma série de questões que a gente tem que entender quando a gente olha pro universo esportivo.“
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A participação feminina no esporte avançou muito e pode crescer ainda mais. No Sesc Verão, além de espaços para a prática de diferentes modalidades, temos oportunidades para discutir o assunto com mulheres que se destacam no universo esportivo brasileiro. Confira aqui a programação completa.
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