*Maria Laurinda Ribeiro de Souza
Passando pela praça da Igreja de Moema¹, lugar onde se cruzam diferentes habitantes desse bairro outrora residencial², uma placa, na parte superior de uma antiga loja, chama a atenção:
Após 34 anos de trabalho, os proprietários venderam a loja e agora merecem desfrutar a vida. Ela era considerada por muitas pessoas como ponto de referência do bairro. Eu sou o filho, darei continuidade… mantendo, assim, parte de nossa tradição. Não poderíamos encerrar nossas atividades sem agradecer a todos nossos clientes, fornecedores e amigos que fizeram parte de nossa história. Muito obrigado!
Esta mensagem surpreende pelo inusitado. Hoje em dia não estamos acostumados a este tipo de reconhecimento e agradecimento público. Além disso, a tradição e a valorização da continuidade de uma história familiar também não se encontram em alta no mercado de ações; pelo contrário, é o novo que é sempre incensado. Que se criem redes solidárias em função do trabalho – clientes, fornecedores e amigos – poderia ainda ser um valor, mas sabemos o quanto isso se torna cada vez mais difícil na cultura. Mas é a primeira frase que se abre para algumas questões pertinentes ao tema deste encontro:
Qual o lugar do trabalho na vida? Como ele se configura no mundo de hoje? Quais os efeitos dessas configurações? Do trabalho compulsivo – que faz com que os sujeitos se tornem robotizados – à impossibilidade de se incluir no mundo do trabalho – que faz com que os sujeitos se sintam fora da comunidade humana, há uma série de sofrimentos que podem ser pensados como efeitos da cultura de nossos tempos. O rompimento dos laços sociais e da tradição confronta-nos hoje com um momento de passagem… Que possibilidades se vislumbram para fazer frente a essas transformações?
Se fizermos uma análise mais detalhada da mensagem deixada pelo filho, duas contradições se evidenciam no discurso: primeira e mais evidente: há uma dicotomia suposta entre o mundo do trabalho e o mundo do prazer – só agora, passados tantos anos é que os pais poderão desfrutar a vida –, e, segunda, o tom dessa primeira frase não se sustenta no que vem a seguir: pois aí se apontam várias marcas de reconhecimento e, portanto, podemos supor, de realização e prazer decorrentes do trabalho: ser um ponto de referência, construir laços sociais, fazer história, deixar um legado para a geração seguinte… Ou estará nessa contradição a ambiguidade própria do espaço do trabalho: lugar conflitante onde se atualizam satisfações de diferentes pulsões; onde se passa grande parte da vida, onde se vivem relações ora intensas com os outros – de afeto e de rivalidade – ora de isolamento e de insuficiência, às vezes devastadores.
Em nota de rodapé ao Mal-estar na cultura, Freud (1930) acentuou o valor libidinal e cultural do trabalho:
“Nenhuma outra técnica de condução da vida liga o indivíduo tão fortemente à realidade como a insistência no trabalho, que ao menos o inclui de forma segura num fragmento da realidade, a comunidade humana. A possibilidade de deslocar sobre o trabalho profissional e sobre os vínculos que a ele se enlaçam, uma considerável medida de componentes libidinais, narcisistas, agressivos e até eróticos, lhe confere um caráter indispensável para confirmar e justificar a vida em sociedade.” (p.80)
Será, ainda, o trabalho uma possibilidade de inclusão segura na comunidade humana? Ou melhor, haverá possibilidades de inclusão seguras? Já aqui podemos nos deter sobre um dos impasses característicos dos tempos atuais e que vão atravessar todos os dispositivos institucionais: a modernidade está estreitamente ligada à idéia de progresso e à valorização positiva da novidade. Em seu interior, gesta-se a imagem de um sujeito criativo, poético, convocado continuamente para a construção de sua singularidade e para a organização da coletividade, mas também a de um homem burocratizado, alienado, coisificado, impotente e desencantado com o mundo. O mundo da produção e do consumo propõe, de forma nem sempre explícita, um amalgamento dessas duas vertentes. Desenvolve-se, facilmente, um imaginário social de que tudo que permanece é efeito do conservadorismo e do conformismo e de que tanto os objetos quanto os sujeitos poderiam ser facilmente descartáveis. A ultrapassagem é uma palavra de ordem. Afinal, como se tornou conhecido vulgarmente o dito popular revela esse movimento constante: “A fila anda”. Não há tempo para chorar os que ficam pelo caminho ou para amparar os que caminham trôpegos às voltas com as consequências dos atropelamentos sofridos.
Segurança é uma forma antiga e tradicional de estar no mundo. Ela foi substituída pela ideia de risco. Esta palavra – risco – derivou sua origem de um termo náutico espanhol e significa “correr perigo” ou “ir contra uma rocha”. O homem do passado podia submeter-se a mortificações e sacrifícios, pois eles lhe garantiam reconhecimento, o investiam de uma responsabilidade limitada e previamente definida e o ligavam aos demais por meio de todo tipo de deveres rotineiros. Não havia a angústia, própria da modernidade de ter que se inventar cotidianamente e ter que dar contas, o tempo todo, de sua capacidade produtiva. Nas últimas décadas, a noção de risco radicalizou-se; tornou-se um “jeito de viver”, no qual o excesso está sempre presente e vencer os limites, não importando os custos, tornou-se o grande desafio.
No mundo do trabalho essa necessidade contínua de prestar contas para garantir seu lugar, aparece, muitas vezes, com as roupagens das compulsões, tornando-se, aos poucos, o único espaço de uma precária afirmação possível. A tecnologia, com suas inovações contínuas e sua penetração em todos os âmbitos, permite que o trabalho se estenda para além do tempo e espaço contratados; trabalha-se no escritório, na fábrica, nos intervalos de almoço, às noites, nos fins de semana e nas férias. Estamos conectados o tempo todo; a qualquer momento podemos ser encontrados para esclarecer ou resolver um problema. Esquecer o celular ou desligar o computador, ficar desconectado – seja material, seja simbolicamente (manter-se atualizado, reciclar-se permanentemente) – pode ser motivo de ansiedade e dispersão confusional. As queixas tão frequentes de cansaço, apatia, insônia, irritabilidade, são efeitos dessa forma de existir. Mania e depressão serão as faces reconhecidas pela cultura contemporânea desse malestar. E a medicalização ou a exclusão sua forma de tratamento.
Um relato anedótico nos aponta para os efeitos dessa transformação do lugar do trabalho – de espaço de reconhecimento e realização criativa, para a robotização alienante e compulsiva. Entre a atividade profissional, escolhida livremente e vivida como uma possibilidade sublimatória e a reprodução em série do mundo robotizado do trabalho – produtor de objetos úteis para a comercialização compulsiva, é o lugar do sujeito que se coloca em questão. O exemplo pode ilustrar, como metáfora, o alto custo desse tipo de trabalho².
O etnólogo Jean Malaurie, em seu livro Os últimos reis de Thulé, relata o encontro comercial de um grupo de esquimós, habitantes do Ártico, com um grupo de americanos, participantes de uma base atômica:
“Um jovem americano pede-me que diga a um esquimó que acaba de fabricar uma figura de marfim: ‘Please, tell the Esquimó para raspar muitos assim para mim. More! Que elas sejam iguaizinhas. Mas diga-lhe que deve diminuir o preço à medida que aumenta a quantidade. Darei Five dollars por cada um, ao invés de ten. Traduzo. O esquimó assusta-se. – Não é possível! Diga a ele, a este Qraslounaq mau que quanto mais parecidas houver mais caro será, pois será mais desagradável refazê-las!”
O trabalho, quando desprazeroso, mesmo que realizado automaticamente, como se não tivesse custos, acaba por mimetizar os homens aos objetos fabricados: correm o risco de se verem coisificados.
O homem moderno está permanentemente confrontado com sua condição de desamparo, insuficiência e vulnerabilidade. A transformação nas formas de trabalho e de ocupação do tempo, que acompanharam os desdobramentos da revolução industrial e a reprodução ampliada do capitalismo, acentuaram esses aspectos e culminaram na produção de “resíduos humanos” (Bauman, 2001) – 3 Esta referência encontra-se no livro de Nathalie Zaltzman (1994), A pulsão anarquista, p.83. seres supérfluos e desperdiçados, e na inutilização de formas anteriores de subsistência. O surgimento do individualismo, com o início do Renascimento, libertou, gradativamente, o homem moderno dos grilhões da autoridade e da tradição, mas, ao retirar-lhe a segurança de um lugar predeterminado, lançou-o na “era de um tormento perpétuo” (Bruckner, 1995). Sua impossibilidade em se incluir nos espaços reconhecidos pela cultura, em se destacar, em afirmar o brilho narcísico do eu, em suportar a existência do outro – vivido como rival, inimigo, competidor – torna-o alvo fácil das manifestações sintomáticas do narcisismo na forma de depressões, auto-acusações ou revoltas odiosas e violentas. Os ciúmes e as invejas tornaram-se afetos dificilmente suportáveis e sua resolução pode levar, nos casos extremos, à eliminação do outro.
Por outro lado, a alienação no trabalho pode ser entendida como uma tentativa de fuga do desamparo, do conflito, da “esperança louca” de que o risco, a insegurança e o sofrimento psíquico desapareçam. O objeto, que poderia ser fonte de prazer e realização sublimatória, torna-se objeto de necessidade e, portanto, demandante de uma submissão incondicional dos sujeitos. O risco do desemprego acentua essa sujeição. A não-inclusão no mundo do trabalho tem mostrado consequências drásticas – xenofobia, revolta dos jovens marginalizados, depredações, queima de bens materiais – símbolos de uma cultura perversa que não permite o reconhecimento de uma parcela significativa de sua população.
Sabemos que os projetos identificatórios se constroem a partir dos sinais de pertinência e reconhecimento que o olhar dos pais (marcado por suas histórias e por seu lugar na cultura) e, depois, os olhares dos outros, oferecem a cada sujeito que faz sua entrada no mundo. Os que não conseguem ter acesso aos lugares tidos como privilegiados, crescem identificados a um não-lugar ou a um lugar de deterioração, de humilhação social – meninos de rua, vagabundos, favelados, desempregados… Nessas condições, a submissão e/ou a violência são respostas possíveis a essa desqualificação; são formas de construir um lugar.
Outra consequência dessas características evidenciadas pela modernidade é que a ideia de história torna-se precária e os laços de solidariedade e reconhecimento coletivos liquefazem-se – em conformidade com a feliz imagem proposta por Bauman de “modernidade líquida”. Os lemas são: “cada um por si”, “a vida não pode parar” , “o que importa é vencer”, “viva o momento”, “bom é ser popular”, “seja feliz”… Não é, então, realmente inusitada a mensagem com que iniciamos esta conversa?
Após 34 anos de trabalho, os proprietários venderam a loja e agora merecem desfrutar a vida. Ela era considerada por muitas pessoas como ponto de referência do bairro. Eu sou o filho, darei continuidade… mantendo, assim, parte de nossa tradição. Não poderíamos encerrar nossas atividades sem agradecer a todos nossos clientes, fornecedores e amigos que fizeram parte de nossa história. Muito obrigado
Não é significativo, também, que nela não haja referência aos trabalhadores, aos empregados dessa loja, que, sem dúvida, fizeram parte dessa história?
*Maria Laurinda Ribeiro de Souza é psicanalista, professora do Curso de Psicanálise e Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. Membro do Grupo de Trabalho e Pesquisa em Saúde Mental Relacionada ao Trabalho e Direitos Humanos. Autora de ensaios e livros, entre eles, Vertentes da Psicanálise: o hospital. A violência. A clínica. A escrita. São Paulo, Pearson ed., 2017 (Coleção clínica psicanalítica), onde este artigo foi publicado originalmente.
Notas de rodapé:
¹ Nos últimos anos, este bairro sofreu grandes transformações arquitetônicas com a construção de prédios comerciais, lojas, livrarias, redes de supermercados e ampliação de serviços. Essa transformação vertiginosa do espaço físico da cidade, sem planejamento urbano, tem efeitos negativos, significativos, sobre a qualidade de vida da população.
² A referência encontra-se no livro de Nathalie Zaltzman (1994), A pulsão anarquista, p.83.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
BRUCKNER, P. La tentación de la inocência. Barcelona: Anagrama, 1996.
FREUD, S. (1930) “O mal-estar na cultura”. In: Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu, 1994, v. 21.
SOUZA, M.L.R. Violência. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2005.
ZALTZMAN, N. A pulsão anarquista. São Paulo: Escuta, 1994.
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