O cronista Pero de Magalhães Gândavo, em sua “História da Província de Santa Cruz”, registrou que, em 1564, uma ipupiara foi vista e morta no litoral de São Vicente pelo capitão Baltazar Ferreira. De acordo com o relato de Gândavo, a ipupiara tinha (ortografia da época): “quinze palmos de comprido e semeado de cabellos pelo corpo, e no focinho tinha humas sedas mui grandes como bigodes”, finalizando a história com o seguinte comentário:
“Os índios da terra lhe chamam em sua lingoa Hipupiàra que quer dizer demonio d´agua. Alguns como este se viram já nestas partes, mas acham-se raramente. E assim tambem deve de haver outros muitos monstros de diversos pareceres, que no abismo desse largo e espantoso mar se escondem, de nam menos estranheza e admiraçam; e tudo se pode crer, por dificil que pareça: porque os segredos da natureza nam foram revelados todos ao homem, pera que com razam possa negar, e ter por impossivel as cousas que nam vio nem de que nunca teve noticia”.
O que poucos sabem é que na Vila de Cananeia também apareceu uma ipupiara, conforme lemos nas “Memórias da Villa de Cananea”, resgatadas pelo historiador Antônio Paulino de Almeida (1882-1969).
1733 entraria para os anais da vila como o ano em que ali apareceu o monstro que os bugres do lugar chamavam de Ipupiara, “coisa má que anda n´água”. A horrenda criatura foi vista por vários moradores enquanto parecia vadiar na quentura do dia. Afiançavam que, satisfeita de lagartear-se, retirava-se para o poço de um rio que vertia das fraldas do monte Itapitangui e desaguava no mar.
Essa história também mereceu a atenção do historiador Gustavo Barroso (1888-1959), que escreveu uma crônica intitulada “Os prodígios de Cananeia” para a sua coluna “Segredos e Revelações da História do Brasil’, publicada na revista “O Cruzeiro”, de 9-11-1957, cujo recorte foi-me presenteado, há alguns anos, pelo historiador Ary de Moraes Giani (1913-2005).
Como frisamos, a aparição da ipupiara de Cananeia deu-se no ano de 1733.
O “monstro”, conforme lemos nas “Memórias de Cananeia”,foi visto “aquentando-se ao sol numa praia, ao ocidente da vila; depois no poço dum rio, perto do mar, nas vertentes do Itapitangui, onde o atou o ´destro caçador´ Pedro Tavares com ardilosa traça [ardil, astúcia] e um tiro certeiro de bacamarte”.
Matar uma besta-fera nunca foi tarefa das mais fáceis. Ainda mais uma besta como aquela. Diziam que se assemelhava a um homem e que até as suas partes íntimas eram parecidas com o similar humano
Relata a crônica que o monstro tinha a cabeça e o corpo de um touro. Media treze pés de comprimento e nove de grossura. O pescoço levantado media três palmos de comprido e cinco de grossura. Glândulas encarnadas destacavam-se na horrível caraça, que tinha viseira e crinas inclinadas sobre a moleira. As orelhas, também escarlates, de um palmo de altura, eram semelhantes às do homem. No lugar dos cornos tinha uns calos duros, altos e negros. Os olhos, redondos e com as meninas pretas; a circunferência, encarnada.
As ventas abertas eram do tamanho de um punho. A bocarra, rasgada. Os beiços, grossos e rubicundos. As queixadas, com poucas barbas, grossas e duras. Os dentes, largos, unidos e cortantes, seguidos de uma língua redonda. Os braços e pernas, três palmos de compridos e pouco menos de largura. Seus cinco dedos eram de meio palmo de compridos; as unhas, negras, grossas e quadradas. A calda, de três palmos de comprido, acabava em duas pontas abertas, que eram peladas, lisas e encarnadas. O corpo, todo frisado de pelo curto, macio e acastanhado… E por aí prosseguia a crônica, pródiga em detalhes.
O que despertou mesmo a curiosidade do povo foi a descrição das partes íntimas da besta, cuja semelhança com a genitália humana, o cronista, pudico, não se atreveu a descrever na língua de Camões. Buscou socorro e providencial recato na língua de Cícero: “(…) cum sit immodicec longum: altamen genitale hominie simile (…)”
Após árdua e perigosa caçada, com o risco da própria vida, Pedro Tavares e seus camaradas conseguiram dar cabo da besta. Ali mesmo, na praia ocidental da vila, procederam à dissecação do animal, inclusive registrando as suas medidas o mais fiel possível, a despeito de só assinarem os nomes fazendo uma cruz no papel. O grito da fera, que se fez ouvir por toda a vizinhança, era similar ao berro do boi. Contam que do gordo de suas carnes se derreteu “abundante e claríssimo azeite”. Transcrevo, na íntegra, trecho da crônica de Gustavo Barroso:
“Os que o viram assim o descreveram ao memorialista: cabeça e corpo de touro, com 3 pés de comprimento de 9 de grossura, circulando o pescoço de 5 pés de espessura por glândulas encarnadas. Na cabeça chamorra, uma ´trumphada de crinas crespas e inclinadas sobre a moleira´. As orelhas escarlates apresentavam forma humana. Ao invés de cornos, tinha dois calos duros e negros ´como pimpolhos´. Olhos redondos e vermelhos de pupilas pretas. Ventas do ´tamanho dum punho´. Rasgada boca, de grossa e túmida beiçarra. Queixada barbuda, dentes cortantes, língua roliça, braços e pernas de 3 palmos, unhas fortes e negras, cauda bifurcada, corpo frisado de pêlo ´curto, macio e acastanhado´. Enfim, na língua de Horácio, que, como o francês brave l´honnêtete o que a grosseria do vernáculo não consente: cum sit immodice longum – altamen genitale hominie simili… ´O ecco do seu buzinar quasi imitava o berro do lobo e se ouvia por toda a vizinhança do gordo de suas carnes derreterão abundante e claríssimo azeite´”.
Gustavo Barroso acreditava que tanto a ipupiara de São Vicente como a sua similar de Cananeia seriam “lobos ou leões-marinhos, desses que, de vez em quando, as correntes oceânicas arrastam mortos ou vivos, até nossa plagas meridionais”.
Muitos anos depois, em sua “Descrição primeira em que se tratam os casos memoráveis acontecidos nesta Vila de Cananeia, desde sua criação até 31 de dezembro de 1787”, o vereador Luiz Antônio de Freitas, exímio latinista, não pretendendo deslustrar a história de seus ancestrais, mas antes, “para acreditar”, anotou em sua memória estes versos
“Sic Protector parcit in lictorisPhocas et possuit fluctibus in pisces”. (*)
(*) “Assim o Protetor espalhou no litoral as focas e colocou nos rios os peixes”.
Pelo sim, pelo não (“Yo no creo en las brujas pero que las hay, las hay!”), aqui fica o relato, a título de curiosidade, para os meus leitores.
Texto: Roberto Fortes, morador de Iguape, graduado em Letras, escritor, poeta, historiador e jornalista.
*Esse conteúdo editorial faz parte da série online “Histórias Míticas do Vale do Ribeira” que integra a programação especial em comemoração aos 100 anos do prédio histórico do Sesc Registro, nominado “KKKK”, como ficou conhecido o conjunto arquitetônico instalado em 1922 pela Companhia Ultramarina de Desenvolvimento (de cujo nome em japonês -Kaigai Kogyo Kabushiki Kaisha- deriva a sigla dos quatro Ks). No canal do YouTube do Sesc, o público também pode acompanhar o processo de criação das ilustrações pelo artista Sávio Soares. Além de lendas e causos populares que povoam o universo da cultura tradicional regional, as publicações trazem também crônicas sobre locais, acontecimentos, paisagens e personagens históricos do Vale do Ribeira.
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