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Mesmo quem vive diariamente com os olhos e as mãos grudados no smartphone ainda tem algo a aprender sobre como lidar com o universo digital? A que se refere o conceito de letramento digital em tempos de hiperconectividade e redes sociais? Tem alguma coisa a ver com alfabetização ou inclusão digital? Quais competências as tecnologias contemporâneas vêm tornando inescapáveis para o exercício da cidadania nos dias de hoje? E por que esse assunto deveria ser do interesse de praticamente todo mundo?
Em entrevista à EOnline, Marcelo El Khouri Buzato, professor livre-docente da Universidade Estadual de Campinas e coordenador do programa de pós-graduação em Linguística Aplicada do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp, discute algumas dessas noções e conta um pouco de sua pesquisa no campo das linguagens, das tecnologias e da sociedade.
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EOnline: Se até os anos 1980 e 1990, saber ler e interpretar textos, realizar operações matemáticas básicas, por exemplo, eram essenciais à prática da cidadania, que tipos de novas competências passam a se tornar necessárias hoje tendo em vista a crescente dependência das pessoas em relação às Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs)?
Marcelo: As novas competências dizem respeito, basicamente, a três eixos: o da informação, o da operação e o da interação. No caso da informação, estamos falando não apenas de sabermos usar ferramentas que nos permitam localizar informação relevante, julgar sua confiabilidade, encaixá-la em nosso repertório etc., mas também em fazer e utilizar o que chamamos de ‘curadoria’ das informações, ou seja, saber filtrar, selecionar e indexar aquilo que de fato é representativo, plausível e que merece tomar nossa atenção e tempo. Isso se faz, inclusive, utilizando ferramentas como agregadores, notificadores e, claro, ‘seguindo’ outros curadores. Isso é importante em todos os campos do saber, mas, hoje, em especial, no que diz respeito a teorias da conspiração, falsas notícias (fake news), supostos especialistas que mantém canais em mídias sociais e assim por diante. Além disso, hoje em dia, é de vital importância que as pessoas tenham consciência de que toda vez que buscam uma informação online, elas estão, automaticamente, fornecendo informações delas, que podem ser informações secundárias, por exemplo, em que sites eu naveguei, com que pessoas eu falei, que trajeto eu faço com meu automóvel etc., até informações mais sensíveis, como dados de cartão de credito, documentos pessoais, fotos e vídeos que permitem que minha face seja reconhecida por máquinas, dados biométricos e assim por diante.
O nível da operação talvez seja o que, hoje, ofereça menos dificuldade prática para as pessoas, já que a penetração do digital no cotidiano é enorme, as interfaces e métodos de operação dos programas já têm um certo grau de padronização, certos paradigmas como o dos menus+ícones+janelas já se tornaram ‘naturalizados’, por exemplo. Além disso, existe uma cultura colaborativa em rede que ajuda muito as pessoas a aprenderem como se usa tal ou qual programa, como se resolve tal ou qual problema técnico no sistema, muitos tutoriais, muitos vídeos, muitos fóruns onde as pessoas podem conseguir ajuda. O desafio, agora, é as pessoas entenderem o que exatamente os programas/aplicativos e aparelhos estão fazendo quando elas não os estão usando, saber que permissões devem ou não ser dadas a esses programas para que acessem determinadas informações no seu computador ou celular. Há também o problema da transição das interfaces de apontar e clicar para as de toque e de voz. As de toque, particularmente, trouxeram dificuldades para idosos, mesmo os já habituados ao apontar e clicar. As de voz requerem, ainda, bastante treinamento dos programas e bastante atenção dos usuários. Quem usa corretores automáticos em redes sociais e programas de mensagens instantâneas sabe do que estou falando.
No que tange à interação, o desafio é talvez o maior que temos. Nós temos visto que o cotidiano das pessoas é perpassado por interações mediadas por computador/mídias sociais o tempo todo, cada vez mais. Isso está afetando a maneira como as pessoas interagem socialmente, dentro e fora da internet, já que as duas coisas não se separam mais. Temos visto, por exemplo, debates que descambam para brigas que vão ganhando mais e mais participantes, até que qualquer possibilidade de entendimento racional se perca, e as pessoas simplesmente se bloqueiem. Parte desse dissenso é sustentado por robôs e parte da pauta que leva ao dissenso é precipitada pela ação de algoritmos. São interactantes novos com os quais ainda não sabemos lidar. Além disso, os circuitos de interação não são mais definidos pela proximidade geográfica, por relações locais, históricas entre as pessoas, mas, especialmente, por afinidades de pensamento, opinião e de sentimento perante certos assuntos, que os sistemas das mídias sociais detectam, fazendo com que, cada vez mais, as pessoas interajam apenas com quem pensa igual, sente igual, deseja o mesmo, despreza o mesmo etc. São as famosas bolhas.
O mais importante de tudo, vale destacar, é que todas essas habilidades dependem, fundamentalmente, daquelas mesmas que sempre foram necessárias: saber ler com compreensão e escrever com clareza, saber compreender um problema quantitativo e que tipo de cálculo é necessário utilizar para resolvê-lo, entender o que uma informação quantitativa significa em termos de qualidades das coisas no mundo, saber interagir socialmente de forma a evocar a cooperação dos outros na solução de um problema etc. […] Na verdade, o uso das tecnologias digitais da informação e comunicação será tão mais consciente, eficaz e crítico quanto mais essas novas possibilidades estiverem integradas com as habilidades básicas que aprendemos na escola, desde cedo. É o que alguns pedagogos chamam de ‘alfabetizar letrando’.
EOnline: Qual a diferença entre letramento digital e alfabetização digital?
Marcelo: Para distinguir alfabetização digital de letramento digital eu sigo as concepções que já existem sobre alfabetização e letramento em geral, ou seja, a alfabetização é um processo de ensino-aprendizagem dos rudimentos de uma tecnologia discursiva (nesse caso, a língua escrita), ao passo que o letramento seria a condição ou capacidade de utilizar essa tecnologia em práticas sociais, em contextos específicos, para fins específicos, com consequências específicas. […] Saber o que é um ícone, o que tal ícone representa, que ele pode ser clicado, arrastado, copiado, deletado etc., e que se eu clicar ali ele abre um programa, se eu o deletar, eu não deletarei o programa e assim por diante, seria parte da alfabetização digital. Já, se eu aprendi a usar tal programa para tal coisa com tal finalidade em eventos sociais concretos e específicos, com competência, ou mesmo se eu uso esse ícone como estampa na minha camiseta para fazer uma piada, eu estou praticando letramento digital. Por exemplo, eu não apenas sei o que é e como se cria uma planilha, mas eu uso planilhas para fazer meu orçamento; eu não apenas sei como acessar o Twitter, mas eu uso o Twitter para divulgar meus produtos, ou para fazer curadoria de opiniões e noticias que me interessam, para ajudar meu candidato a ganhar uma eleição. Isso é letramento, basicamente.
EOnline: E a chamada inclusão digital?
Marcelo: A inclusão digital deve ser pensada, pelo menos a meu juízo, como uma coisa mais complexa do que se entenderia à primeira vista, ou seja, menos a partir da ideia de ‘acesso’ – porque apesar das qualidades de acesso serem diferentes entre os que podem mais ou podem menos, o acesso, depois do boom do smartphone no Brasil, é praticamente uma questão de tempo na vida das pessoas – e mais em termos de conexões, desigualdades e diferenças. A equação tradicional da inclusão digital, quando eu comecei a estudar isso, dizia que quanto mais acesso à internet se desse às pessoas mais pobres – leia-se ‘excluídas’ por não terem capacidade de consumo de bens tecnológicos sofisticados –, ou mais ‘diferentes’ – leia-se excluídas pelas suas identidades estigmatizadas socialmente –, mais se produziria igualdade (social).
A gente sabe muito bem que isso não funcionou, porque quando a sociedade como um todo se digitalizou, as razões pelas quais os pobres e os ‘diferentes’ eram excluídos também se manifestaram nesse meio. É claro que muitos movimentos identitários ganharam força, mas isso foi porque os ‘diferentes’ se conectaram mais entre si, e com outros ‘diferentes’, para buscar os mesmos objetivos – direitos civis, por exemplo. E muitas comunidades pobres conseguiram alternativas de melhoria de vida utilizando essas tecnologias para superar barreiras ou suprir carências de infraestrutura e informação. Certas comunidades, por exemplo, ganharam mais acesso a serviços de governo via telecentros; certos produtores locais conseguiram se livrar de atravessadores, estabelecendo um contato direto, via internet, com seus compradores, e assim por diante.
Mas o interessante nisso tudo é que a verdadeira inclusão depende de eliminar desigualdades sem querer apagar ou reprimir diferenças, e isso, como temos visto, não depende só de conectar as pessoas, mas de como se estabelecem regulamentações, protocolos e mesmo programas que evitem a exploração do trabalho imaterial dos usuários, o discurso do ódio, as bolhas, a desinformação proposital e assim por diante. Por outro lado, o paradigma do ‘acesso gratuito’ cria muitas distorções, porque não há acesso gratuito. Toda vez que algum aplicativo, site ou serviço digital me dá acesso a alguma coisa ‘de graça’, eu estou dando de volta algum tipo de acesso a mim, algum dado ou metadado e, portanto, algum tipo de conhecimento, que é transformado em valor para essa empresa. Então, de certa forma, existe aí um trabalho não-remunerado acontecendo, cujos termos não são claros, nem foram bem negociados entre as partes. Essa produção de dados/conhecimento que fazemos sem notar ou sem valorizar gerou uma nova economia – dizem que os dados são o novo petróleo – da qual participamos, muitas vezes, não como produtores, nem como consumidores, mas como produtos.
EOnline: Como a evolução das Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) tem transformado o que se entende como o universo abarcado pelo letramento digital?
Marcelo: Em primeiro lugar, o conceito de letramento digital se desdobrou recentemente, para alguns teóricos, no que poderíamos chamar de velhos e novos letramentos. Os velhos seriam, basicamente, constituídos pelo uso das novas tecnologias para se fazer as mesmas coisas que se fazia, apenas mais rapidamente. Por exemplo, fazer uma certidão de nascimento num cartório mudou muito em termos do processo técnico, mas muito pouco em termos da prática social em si, da finalidade, do contexto e da consequência. Dar uma aula expositiva com um PowerPoint em que se ‘passa o ponto’ para a classe, como se fazia na lousa de pedra, também. Tem tecnologia, mas é velho, no limite. Usa o digital, mas não é mesmo digital. Os novos letramentos seriam usos do digital de acordo com a mentalidade ou o etos do que chamamos de cultura digital, ou seja, colaboração em rede, hibridização de linguagens, capacidades e conhecimentos distribuídos, propriedade intelectual desprotegida, fusão entre os polos da produção e do consumo dos textos/mídias.
No caso das minhas pesquisas, eu tento ir um pouco além tanto da concepção tradicional quanto da ideia de velhos/novos. Assim como para a inclusão digital, eu gosto de pensar que o processo é constituído por conexões que fazem emergir as diferenças qualitativas. Cada letramento está vinculado a outros. Mandar seu currículo para um amigo entregar na empresa em que trabalha implica saber usar e-mail. Fazer o currículo requer saber o que colocar no currículo – que pode ser perguntado ao Google ou a alguém na minha rede social. Redigir o texto num processador tipo Word, que vai ter uma ferramenta que ajuda você a contar as palavras e corrigir a ortografia, mas que não vai resolver nada se você não souber português ou não souber selecionar qual informação é relevante para o empregador e assim por diante. Da mesma forma, cada sujeito dito letrado em alguma coisa, algum gênero, alguma prática, só tem essa competência porque está vinculado com outros agentes, inclusive não-humanos. Eu sou capaz, por exemplo, de ler um romance em inglês com a ajuda do Google Tradutor, do Kindle, talvez de um filme, ou de professor que me deu uma noção inicial sobre o universo daquele romance, para que eu pudesse usar essa noção ao fazer inferências sobre o que está escrito e assim por diante. A competência do letrado, assim como o fluxo das ações, é uma distribuição, uma rede. Então ser letrado não seria apenas ter capacidades de usar tecnologias – em consonância com os métodos e princípios de uma certa cultura –, mas acionar e gerenciar uma rede de saberes e agências, saber, inclusive, como as tecnologias usam a gente.
Por fim, com a internet das coisas e o boom do uso dos dados (o Big Data) como forma de conhecer e gerenciar o mundo e a propria vida das pessoas, o letramento digital tem cada vez mais a ver com o assim chamado ‘letramento de dados’. Isso envolve desde entender a diferença entre dado, informação, conhecimento e sabedoria, até saber obter dados, montar datasets, fazer análises estatísticas e comunicar essas análises. É algo que antes a gente achava que era problema de cientistas e demógrafos – muito longe do cidadão comum –, mas que se tornou, de fato, uma necessidade básica do cidadão e das comunidades, muito longe daquilo que se consegue aprender na escola hoje em dia.
EOnline: Faz sentido, portanto, falar em promoção de letramento digital mesmo para pessoas nascidas nas últimas décadas, os chamados nativos digitais, certo?
Marcelo: A chave para a gente pensar sobre isso é entender que não se trata do letramento digital, mas de letramentos digitais, ou seja, práticas especificas, para finalidades especificas em contextos específicos, com consequências especificas do uso do digital. Então, quando queremos promover letramento digital, na verdade, queremos promover algum deles. Na escola, queremos, por exemplo, que as pessoas aprendam a consultar fontes de informação, avaliá-las, organizá-las e transformar o que se tira delas num texto útil e inteligível. Já com meus amigos no World of Warcraft, eu posso querer aprender como se usa o chat, o que querem dizer os ícones que eu preciso usar para poder participar de uma guilda e assim por diante. Se sou um investidor, quero aprender o que querem dizer os gráficos que o meu app de investimento mostra, para tomar decisões corretas, e por aí vai.
Para uma pessoa analfabeta, eu posso querer promover a prática de usar um aplicativo de [jogo de] forca no celular para praticar ortografia. Então, é claro que quem consegue ler um verbete na Wikipédia e escrever um trabalho escolar já sabe usar um aplicativo de [jogo de] forca, mas talvez se interesse, agora, por criar um aplicativo. Já quem desistiu de ir às aulas de Educação de Jovens e Adultos porque não tem transporte público decente para tanto, pode se interessar por interagir com outras pessoas via WhatsApp sem usar apenas o áudio, para aprender a usar mais palavras. Enfim, se a gente vincula as habilidades com práticas e propósitos específicos, a gente entende quais letramentos precisam ser promovidos para quem, e no que isso poderia resultar.
EOnline: É possível falar em parâmetros para entender diferentes níveis de letramento entre, por exemplo, uma pessoa que domina o uso de smartphones e computadores e outra que, além disso, conhece também linguagens de programação?
Marcelo: Sim, não só é possível como existem matrizes de habilidades em letramento digital, que se mesclam com letramento informacional e computacional. Na Europa, por exemplo, as empresas, em alguns casos, exigem que as pessoas obtenham certificações de certos níveis dessas matrizes da mesma forma como, aqui, se cobra que o profissional tenha o certificado tal de inglês ou francês. Considera-se desde o uso das interfaces, até a capacidade de selecionar o software correto para resolver um problema específico em uma organização. É a assim chamada ‘computer driver’s license‘ [‘carteira de motorista’ para computador]. A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) do Brasil também traz elementos que podem ajudar quem trabalha com isso a formular uma matriz, algumas competências e habilidades que devem ser garantidas. A questão é que quando se tenta fazer isso num nível muito detalhado, quando a matriz está pronta, a tecnologia já mudou. Então a gente precisa mesmo focar nas práticas, nos usos, na aprendizagem como consequência da participação coletiva nessas práticas, mais do que uma gramática específica para treinar ou avaliar as pessoas. É o que eu penso.
EOnline: Existem políticas públicas, no Brasil, voltadas ao letramento digital?
Marcelo: Em geral essas políticas vêm no bojo de programas de inclusão digital, ou então de programas de digitalização das escolas publicas. No Brasil, tivemos algumas iniciativas importantes durante os governos anteriores, programas focados em telecentros, Pontos de Cultura e fornecimento de computadores a escolas. Eu pesquisei um programa do governo Lula [2003-2010] chamado Casa Brasil, em que se procurava alguma entidade que já trabalhasse na inclusão de uma comunidade, se doava computadores, se treinava pessoas da comunidade no uso de software livre e, em alguns casos, se integrava o laboratório de computadores (telecentro) com uma biblioteca, atividades educacionais, requalificação profissional, às vezes até mesmo com postos de saúde e serviços bancários. Esses centros tiveram dois anos para obter sustentabilidade financeira por si mesmos – o que, em geral, não aconteceu. Também os Pontos de Cultura criados pelo então ministro [da Cultura de 2003 a 2008] Gilberto Gil foram uma experiencia muito inovadora, que consistia em equipar espaços públicos de produção cultural coletiva que incluíam multimídia e internet, a criação de rádios comunitárias, produção de cinema local etc. Em Campinas, a Casa de Cultura Tainã é um desses Pontos que faz um trabalho muito bacana. Os telecentros e Pontos de Cultura continuam ativos no país inteiro, mas, pelo que tenho acompanhado, hoje, a ênfase dos governos é mesmo em equipar escolas com computadores e trabalhar o letramento digital a partir desse espaço.
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Em 37 unidades no estado de São Paulo, o Sesc conta com o Espaço de Tecnologias e Artes. O ETA oferece programações e cursos em formatos e linguagens diversas, onde os participantes podem desenvolver um entendimento mais amplo das tecnologias – não apenas ligadas ao high-tech – e uma compreensão do que é ou pode ser arte. Atividades voltadas à alfabetização e ao letramento digital são uma constante na programação. Consulte o calendário de ações da unidade de sua preferência.
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