O que quer o povo preto?

18/11/2021

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Por Antonio Junião*

Na arte e na existência: quem somos, para onde vamos?

‘É uma sensação peculiar, essa dupla consciência, essa sensação de sempre se olhar pelos olhos dos outros, de medir a própria alma pela fita de um mundo que olha com desprezo e piedade como diversão.’

(W. E. Burghardt Du Bois)


É uma sensação peculiar essa de se olhar sempre pelos olhos dos outros. Essa tomada de consciência nos é trazida pelo historiador e sociólogo negro americano W.E.B Du Bois no fim do século 19. Ela consta no ensaio Strivings of the Negro People, algo como “Esforços do Povo Negro”, publicado na revista literária The Atlantic Monthly, em 1897.

PHD da Universidade Harvard, um dos mais importantes intelectuais afroamericanos a trazer contribuições fundamentais para a construção do pensamento social antirracista a partir do fim do século 19 e em boa parte do século 20, Du Bois fala da constatação de que a definição de quem ele era não dependia apenas dele, mas também da construção social a ele imposta como consequência da cor de sua pele negra. O autor entendia, então, a necessidade de ter uma “dupla consciência” para se sentir incluído socialmente e sobreviver.

Trago Du Bois para começar esta reflexão porque, a partir dele, proponho algumas perguntas. Como pode se sentir livre, se expressar, comunicar e interferir na sociedade em que você vive um ser que, para a norma, não existe? Como pode ficar à vontade para fazer arte, expressar um ideal estético, um ideal de beleza, um ser que é calado pelo sistema? Que não acessa de forma igualitária o direito de ocupar espaços? Que, pior, nem mesmo é reconhecido como ser humano por esse sistema?

Sigo adiante com Du Bois.

“De repente, percebi que eu era diferente dos outros; ou como, talvez, no coração, na vida e no anseio, mas excluídos de seu mundo por um vasto véu’’, continua o autor, no mesmo ensaio. Aqui, ele se refere às suas memórias de infância, quando se descobre negro e contato com a não aceitação social por causa da cor da sua pele.

É desse entendimento que vem a ideia da dupla consciência. Uma consciência, um modo de ser, de estar, sentir e buscar inclusão para se permitir viver em uma sociedade onde a norma era branca, e na qual sua pele não o incluía no rol dos humanos. Uma consciência embranquecedora. E outra consciência que o definia como homem negro, em busca de seus saberes, ancestralidades, visto como o outro, diferente da normaildade.

Ter duas consciências, no caso, significa ter que se preparar para ter dois modos de vida, dois modos de agir e pensar. Para sobreviver, conseguir existir. Uma consciência obediente ao que o poder hegemônico desenhou para as pessoas de pele não branca. Outra consciência que permitia ser livre, mas apenas nos espaços restritos.

Como criar, produzir, se expressar livremente frente a um processo violento como esse? Seria isso mentalmente saudável?

Trago esse diálogo com Du Bois por refletir com precisão o que vive e sempre viveu a população negra em territórios colonizados. Não ser parte da norma e ter que se adequar sempre foi e ainda é algo que, mesmo entre as resistências, tenta definir pessoas não brancas, principalmente as de pele preta.

O sincretismo religioso, o apagamento cultural e histórico, o embranquecimento forçado. Violências que atravessaram o corpo negro desde os sequestros em África e a chegada nas Américas em caravelas. Violências que cruzaram o período colonial e seguiram após o surgimento das repúblicas e a formação do estado de direito. Violências que por um certo tempo moldaram a língua, o modo de se expressar. Influenciam a cultura e a cosmovisão negra, o modo de fazer e pensar arte, influenciam o modo de se fazer presente.

Mesmo assim, dentre toda violência, muito de África foi trazido de herança, muito de indígena permaneceu, muito de produção de conhecimento e construção de saberes continuou a ser produzido, se retroalimentando de gerações em gerações. Em território brasileiro, é fácil entender essas contribuições sobre design, engenharia e vestuário quando se vai ao Museu Afro Brasil, em São Paulo. Quando se visita as pinturas dos irmãos Timóteo, Artur e João, que no século 19 frequentaram escolas de Belas Artes e tiveram trabalhos reconhecidos e premiados aqui e no continente europeu. Devido ao apagamento cultural, muitos destes saberes, dessas referências, não eram reconhecidas e ensinadas. Pois a construção do imaginário histórico-social branco vigente só permitia ver a população negra subalterna, como escravizada, submissa e sem alma, como a primeira consciência embranquecida que Du Bois trata em seu texto.

Resistir, existir. Como já mencionado, Du Bois foi um dos principais pensadores e ativistas que ajudaram a moldar a base de pensamento dos movimentos negros que lutavam arduamente contra o racismo e pela igualdade nos direitos civis. Depois dele vieram vários outros, não só nos Estados Unidos, mas nos demais territórios colonizados: Continente Africano e América Latina. Movimentos negros cresceram, se fortaleceram, ganharam corpo institucional e uma voz potente. Vozes negras que já se ouviam fortes nas rebeliões quilombolas, abolicionistas, operárias, negras marxistas, chegaram às alturas no século 20. No Brasil, não foi diferente.

Com movimentos em ascendência, a dupla consciência passa a ser provocada e contestada. Frantz Fanon, em Pele Negra, Máscaras Brancas, livro sobre o pensamento psicológico da diáspora africana e os processos possíveis de descolonização, alertava para problemas similares. Para a dificuldade da população negra em se livrar dos sonhos que a modernidade branca iluminista havia projetado para ela sem seu consentimento. Ou seja, é preciso mostrar que não é a branquitude que define a população negra. A pergunta de Fanon “O que quer o homem negro?”, que também serve de inspiração para o título dste artigo, serve como base e talvez um marco temporal para definir a disrupção. Romper com a dor da primeira consciência, a do embranquecimento forçado.

Ocupar espaços.

Sendo assim, quem somos? O que queremos ser? E para onde vamos nós, o povo preto?

Perguntas antes silenciadas passam a ser feitas em alto e bom tom. É possível escutá-las, vê-las, senti-las. Estão nas vozes, experiências, (re)existências de identidades nacionais e transatlânticas. Estas perguntas estão em Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo, Lélia Gonzales, Sueli Carneiro, Fabiana Cozza, Rosane Borges, Rosana Paulino, Helio Menezes, no feminismo negro, nas negras narrativas que se espraiam por mais do que 13 de maio a 20 de novembro. Estão nas cartografias, nos terreiros, nas encruzilhadas, na linguagem, no corpo, na arte e na expressão negras, bela, visual, sonora e para o mundo.

Liberdade de ser, de estar, de sentir e de se expressar sem tutelas.


*Antonio Junião é cartunista e artista visual. Diretor de Projetos Especiais da Ponte Jornalismo e cofundador do Fala! Festival de Comunicação, Culturas e Jornalismo de Causas


Referências:

‘Strivings of the Negro People’ – W. E. Burghardt Du Bois [link
‘Pele Negra, Máscaras Brancas’ –  Frantz Fanon, ed. EDUFBA, p.26.

Do 13 ao 20

O Sesc São Paulo, com intuito de fomentar, fortalecer e ampliar os diálogos sobre a condição social da população negra, realiza em seu terceiro ano consecutivo o Do 13 ao 20 – (Re)Existência do Povo Negro, ação institucional que faz alusão aos marcos 13 de maio e ao 20 de novembro.
A ação objetiva o fortalecimento e o reconhecimento das lutas, conquistas, manifestações e realidades do povo negro, bem como o fomento à equidade, convivência e reconstrução simbólica no campo individual e coletivo, contribuindo para uma sociedade livre do racismo e de outras formas de dominação.
Desta forma, reiteramos os valores institucionais, corroboramos com o processo de ressignificação simbólica do Brasil como comunidade multiétnica e multicultural. 
Saiba mais em www.sescsp.org.br/do13ao20

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