A série “Onde a casa mora em nós” convida para um passeio diferente, sem sair do lugar. Uma viagem que se propõe a ressignificar a presença da casa para além das paredes, para onde ela vive em cada um de nós. Para inspirar essa reflexão, vamos viajar pelos significados e memórias que vivem em casas de artistas e de personagens do cotidiano de nossas cidades. Um chamado para, junto com o Turismo Social do Sesc em São Paulo, aproveitarmos este raro momento de pausa e emergirmos com um novo olhar sobre nossa própria casa e sobre nós mesmos.
“Casa Velha da Ponte, és para o meu cântico ancestral uma bênção madrinha do passado”
Cora Coralina [Estórias da casa velha da ponte]
Há uma velha casa às margens do Rio Vermelho, ao lado da ponte, na Cidade de Goiás. Vamos chamá-la, aqui entre nós, de Casa do Coração Vermelho. Isso porque ali morava Ana, que ainda criança inventou para si o nome Cora, pois era um nome único e evocava a lembrança de um coração.
A menina e depois a Ana mulher deixou esse nome guardado, existindo durante toda uma vida, enquanto seguia suas rotinas em São Paulo, para onde mudou-se, onde casou-se e onde criou seus filhos.
Ana, que estudou até o primário, quando se deparou com a gramática no livro de um de seus filhos atinou: “se eu tivesse de escrever pela gramática, não escreveria coisa nenhuma”. E criou sua escrita única. Foi após os setenta anos, com “todas as idades”, que Ana se auto batizou inteiramente Cora Coralina, retornando à casa velha onde nasceu.
Com a construção de Brasília, distante pouco mais de 300 km, a cidade de Goiás passou a ser um destino turístico procurado e vender doces parecia ser uma fonte de renda certa para uma viúva. Os turistas que gostam de poesia vêm à minha casa e encontram também os doces. Os que vem atrás dos doces encontram a poesia. Quer coisa melhor?, costumava dizer.
“Nasci nesta velha casa,
nesta velha cidade de Goiás e
nasci no século passado.
Tenho comigo todas as idades.
Estou vivendo o melhor tempo da minha vida –
tempo de paz, de tranquilidade, de certezas,
tempo em que não tenho nada e nada me falta.
E não quero ter mais do que isso que você vê.
Tudo isso me basta com sobra.”
Cora Coralina
Cora vivia a casa e tudo à volta, seu olhar pairava sobre seu cotidiano, suas inquietações… Falava das mãos de mulher roceira, da vida das lavadeiras, das prostitutas, dos lavradores, da sua professora, das crianças, de cada pedra erguida na sua cidade, mas também por ela em sua história.
Clovis Carvalho Britto, estudioso que pesquisou a vida da escritora, pontua que o contexto literário daquela época era para poucos, ainda mais em se tratando de mulheres. “Podemos afirmar que Cora Coralina surge como exemplo vivo dessa situação. E, após viver sua vida para o marido e os filhos, privando muitas vezes a sua trajetória literária em benefício da condição de mãe e esposa, cortou todas as amarras, os laços familiares, e regressou em 1956, aos 67 anos, para a sua cidade natal Goiás-GO. Cora voltou com o objetivo de construir seu projeto literário, de realizar o grande sonho de sua vida: escrever e publicar um livro”.
Entrar em uma casa é conhecer quem nela vive. O que nos conta cada objeto, silêncio, som e cheiro. Tudo tem memória. Nesta casa secular, Cora Coralina consagrou-se poeta.
Olhemos a casa de fora. Agora é possível entender por que ela chamou a casa de “barco centenário encalhado no rio Vermelho”.
Da entrada da casa se vê uma cruz do outro lado do rio, o calçamento todo é de pedra. Como Cora disse, levaram o ouro, ficaram as pedras da cidade. Construída em meados do século XVIII, a casa era originalmente destinada ao recolhimento do Quinto Real, imposto cobrado pelo governo durante o Brasil Colônia, que correspondia a um quinto do ouro extraído na região. A casa foi comprada, em 1804, pelo tetravô de Cora e nunca mais saiu da família, passando de uma geração a outra.
Há uma porta antiga de madeira, está encostada. Um convite para entrar. Apesar do calor, bastante comum na cidade de Goiás, há muita ventilação natural. Algumas cartas de amigos se encontram pela mesa. Na carta enviada por Carlos Drummond de Andrade, em 1979, se pode ler: “Ah, você me dá saudades de Minas, tão irmã de Goiás. Dá alegria na gente saber que existe bem no coração do Brasil um ser chamado Cora Coralina”.
Um cheiro de doce de mamão sobe ao ar, a cozinha se aproxima. O trabalho permeia a poesia de Cora e seu ofício nesta casa foi, antes de tudo, de doceira, segundo ela por “convicção e necessidade”.
Sou mais doceira e cozinheira
Do que escritora, sendo a culinária
A mais nobre de todas as Artes:
Objetiva, concreta, jamais abstrata
A que está ligada a vida e
A saúde humana.
Cora Coralina
No quintal, os doces tomavam sol para cristalizar-se, ao final cada um recebia uma embalagem de papel. Dizia a doceira-poeta que seus doces eram diferentes porque eram glaceados, o que oferecia às frutas uma casquinha crocante depois de muita dedicação e tempo de trabalho. Levavam dias para serem feitos, e ficavam ali secando, no quintal da Casa Velha da Ponte. Outros, como os de laranja da terra ou cidra, precisavam ter as frutas lavadas durante dias sob a bica que corre no quintal. Para Cora, cada fruta e cada doce tinha seu ritual.
Mas ainda estamos na cozinha e ali dá vontade de ficar e passar um café, mas vamos seguir. Na sua mesa de trabalho de poeta, uma “desordem harmoniosa” de papeis, além de uma latinha de manteiga da marca Primorosa, antiga. Dentro, ervas para um chazinho na hora da escrita ou em uma outra hora qualquer.
Não vamos falar da bica de água fresquinha, onde as laranjas da terra eram lavadas, não vamos falar do lindo e enorme jardim, nem do quarto ou de qualquer outro canto qualquer. Nem dos livros sobre a cadeira, da bengala apoiada na quina, da caderneta e da caneta ao lado da cama coberta com colcha colorida…
Essa é uma visita para passar o tempo tranquilamente, sentindo a brisa, olhando a vista de cada janela, ouvindo a poesia de Cora em cada canto da casa.
Por isso, você que nunca pisou os pés na Casa Velha da Ponte, pode viajar para lá da sua casa também. O convite é para você também conhecê-la. A visita pode ser feita clicando aqui .
Agradecimentos:Museu Casa de Cora Coralina; Cleomar Rocha
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Os doces de Cora
Uma reportagem especial do “Jornal O Popular” mergulha na antropologia da comida goiana e apresenta a poetisa Cora Coralina em sua essência doceira.
Cora Coralina era uma cozinheira de mão cheia e foi vendendo seus famosos doces glaceados que ela conseguiu comprar a parte que faltava para ser a única dona da Casa Velha da Ponte. Eles foram também seu ganha-pão. Herdeira dos cadernos de receita da mãe, Vicência Brêtas Tahan organizou um livro com os principais quitutes de Cora. Como as antigas receitas representam uma época de outros hábitos alimentares, recebiam muito açúcar e gordura. Assim, duas cozinheiras testaram as receitas e fizeram algumas adaptações. No livro “Cora Coralina: Doceira e Poeta”, Vicência apresenta essas heranças, como o doce de mamão vermelho.
Doce de mamão vermelho
Mamão de qualquer tamanho, vermelho, quase maduro, super firme. Descasque o mamão, retire as sementes e corte em pedaços. Coloque os pedaços em água com bicarbonato ou cal virgem de construção, uma colher de sopa para cada mamão médio. Depois de uma hora lave os pedaços em água pura. Prepare, à parte, calda em ponto de espelho, quantidade suficiente para cobrir os pedaços.
Quando ela estiver no ponto, coloque os pedaços de mamão e em fogo lento espere até que fiquem macios. Deixe dormir na calda, apurando no dia seguinte. Com o auxílio de uma colher de pau ou escumadeira, coloque para escorrer em peneira de taquara. Enquanto isso, apure bem a calda restante, até que comece a açucarar. Depois de escorridos, passe os pedaços de mamão na calda apurada para que fiquem glacerizados. Acabe de secá-los ao sol.
Nota: o bicarbonato ou o cal servem para deixar os frutos durinhos por fora e macios por dentro.
Ingredientes:
1 mamão de 2 quilos
1 colher (sopa) de bicarbonato ou cal virgem
1 quilo de açúcar cristal
Preparo: Siga a receita, mas antes de colocar os pedaços de mamão na calda, faça furos com o garfo para que a calda penetre durante o cozimento.
Dica: se quiser uma apresentação mais simples, você pode levar a calda ao fogo, deixando apurar em ponto de calda firme, enquanto os pedaços já cozidos escorrem. Acrescente o mamão, deixe ferver por mais ou menos 10 minutos, coloque em uma compoteira e sirva frio.
Ela nunca procurou a poesia, a poesia estava dentro dela!
Como pode a poeta ser universal, tendo escrito sobre as coisas de sua pequena Goiás? Cora Coralina consegue. É por isso que sua presença ainda é tão forte tanto no dia a dia da antiga capital do estado de Goiás (onde fica o museu Casa Cora Coralina), quanto na vida de seus leitores e na lembrança da filha Vicência Bretas Tahan, que nesse vídeo conta detalhes da vida de Cora. “Ela nunca procurou a poesia. A poesia já estava dentro dela”, afirma sua filha.
Conhecendo Museus
A obra audiovisual Conhecendo Museus apresenta, com detalhes, os principais museus do Brasil. O Museu Casa de Cora Coralina é um dos museus visitados pelo projeto.
Cora Coralina: Todas as Vidas
“O que vale na vida não é o ponto de partida e sim a caminhada”, disse Cora Coralina. O destino a levou a publicar seu primeiro livro aos 75 anos. Hoje é tida como uma das autoras mais importantes da sua geração. O filme documentário “Cora Coralina: todas as vidas”, dirigido por Renato Barbieri, narra esta trajetória da escritora.
Caminhos da Reportagem | No rastro da poesia, no caminho de Cora
Um trajeto cercado de natureza e poesia. Assim é o Caminho de Cora Coralina, que atravessa o interior do estado de Goiás. Inspirado no Caminho de Santiago de Compostela, na Espanha, o trajeto ainda é recente, foi lançado em abril deste ano, e tem atraído turistas de diversas partes do Brasil e do exterior.
Para inspirar a viagem
E antes de pôr os pés na estrada, a de poeira ou a digital, aqui vai uma poesia de Cora para inspirar sua viagem:
Todas as vidas
Vive dentro de mim
uma cabocla velha
de mau-olhado,
acocorada ao pé do borralho,
olhando pra o fogo.
Benze quebranto.
Bota feitiço…
Ogum. Orixá.
Macumba, terreiro.
Ogã, pai-de-santo…
Vive dentro de mim a lavadeira
do Rio Vermelho, Seu cheiro
gostoso d’água e sabão.
Rodilha de pano.
Trouxa de roupa,
pedra de anil.
Sua coroa verde de são-caetano.
Vive dentro de mim
a mulher cozinheira.
Pimenta e cebola.
Quitute bem feito.
Panela de barro.
Taipa de lenha.
Cozinha antiga
toda pretinha.
Bem cacheada de picumã.
Pedra pontuda.
Cumbuco de coco.
Pisando alho-sal.
Vive dentro de mim
a mulher do povo.
Bem proletária.
Bem linguaruda,
desabusada, sem preconceitos,
de casca-grossa,
de chinelinha, e filharada.
Vive dentro de mim
a mulher roceira.
– Enxerto da terra,
meio casmurra.
Trabalhadeira.
Madrugadeira.
Analfabeta.
De pé no chão.
Bem parideira.
Bem criadeira.
Seus doze filhos.
Seus vinte netos.
Vive dentro de mim
a mulher da vida.
Minha irmãzinha…
tão desprezada,
Tão murmurada…
Fingindo alegre seu triste fado.
Todas as vidas dentro de mim:
Na minha vida –
a vida mera das obscuras.
Nestes tempos de distanciamento social, a série “Onde a casa mora em nós” convida para um passeio diferente, sem sair do lugar. Uma viagem que se propõe a ressignificar a presença da casa para além das paredes, para onde ela vive em cada um de nós. Para inspirar essa reflexão, vamos viajar pelos significados e memórias que vivem em casas de artistas e de personagens do cotidiano de nossas cidades. Um chamado para, junto com o Turismo Social do Sesc em São Paulo, aproveitarmos este raro momento de pausa e emergirmos com um novo olhar sobre nossa própria casa e sobre nós mesmos. Para saber mais clique aqui .
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