A série “Onde a casa mora em nós” convida para um passeio diferente, sem sair do lugar. Um chamado para, junto com o Turismo Social do Sesc em São Paulo, aproveitarmos este raro momento de pausa e emergirmos com um novo olhar sobre nossa própria casa e sobre nós mesmos.
“… nós, os homens do sertão, somos fabulistas por natureza.
Está no nosso sangue narrar estórias;
já no berço recebemos esse dom para toda a vida.
Desde pequenos, estamos constantemente escutando
as narrativas multicoloridas dos velhos,
os contos e lendas […].”
Guimarães Rosa
Cordis, coração em latim; burgo, cidade. A cidade do coração, a pequena e tranquila Cordisburgo, em Minas Gerais. Ou Córdisburgo, pronunciada assim, como que com acento, como os habitantes do lugar. “(…) pequenina terra sertaneja, trás montanhas, no meio de Minas Gerais. Só quase lugar, mas tão de repente bonito”, como a descreveu João Guimarães Rosa, um dos mais importantes ficcionistas da literatura mundial.
De um lado da rua, a antiga estação da Central do Brasil. Do outro lado, a casa, hoje Museu Casa Guimarães Rosa. Avistar aquelas janelas é como fazer uma viagem no tempo: é possível vislumbrar o olhar curioso da criança que observava o movimento da estação, imaginar o pequeno Joãozito deitado no chão do quarto, criando “histórias, poemas, romances, botando todo o mundo conhecido, como personagens, misturando as melhores coisas vistas e ouvidas”. Já se sente uma vontade imensa de adentrar o portão e mergulhar no universo guardado pela antiga residência do século XIX, típica do interior de Minas, construída em adobe, grande tijolo de argila, seco ao sol, muitas vezes acrescido de capim, que ofereceu à casa a resistência necessária para durar e chegar aos nossos dias.
Foi nesse lugar que Rosa nasceu e passou seus primeiros nove anos de vida, de 1908 a 1917. Ali, vendo a chegada e a partida dos viajantes e as veredas que se abriam em forma de revistas, livros e notícias, brotou no menino o interesse pelas letras, pelas línguas e pela riqueza da vida naquele interior, naquele sertão-mundo.
A casa guardava uma preciosidade para um menino introvertido e calado, mas observador e curioso: um espaço reservado para um armazém de secos e molhados. Na venda de seu pai, o Seu Fulô, Joãozito convivia com a gente do sertão, fregueses, vaqueiros e viajantes e ouvia suas histórias. Muitos deles, você vai encontrar em seus livros, como Juca Bananeira, boiadeiro e funcionário de seu pai na venda, que se transformou em personagem de seu conto O burrinho pedrês, da obra Sagarana.
Rosa partiu de Cordisburgo ainda criança, mas a cidade de seu nascimento sempre o acompanhou, fosse pelas cartas que trocava com o pai, fosse pelas memórias que alimentaram e estiveram presentes em toda a sua obra: “(…) quando escrevo sempre me sinto transportado para esse mundo: Cordisburgo.”
Pelos cômodos e corredores da casa-museu, as fotografias, objetos, móveis e livros preenchem e iluminam os espaços e contam histórias da vida de Guimarães Rosa. É possível imaginar vovó Chiquinha em seu quarto, vestida de preto, atenta a tudo e a todos; o coração do pequeno menino acelerar ao escutar a chegada de mais um trem e as novidades do vasto mundo; o burburinho na venda, lugar de tantos encontros e descobertas.
Estão ali, como uma extensão de seu dono, a máquina de escrever que viu nascer o rascunho de “Grande Sertão: Veredas” e as gravatas borboletas eleitas pelo autor, por serem menos complicadas de vestir.
Antes de chegar ao quintal “sombroso de espaços e de árvores”, a cozinha – com seu piso de tijolos e seu telhado de telhas vãs, diferentes do piso de madeira e do forro de taquara do restante da casa – mostra o fogão de lenha, ponto principal do cômodo comandado pela mãe de Joãozito, dona Chiquitinha. “Nossos, bem nossos, são o doce de leite e o desfiado de carne seca. Meu – perdoem-me – é aquele prato mineiro verdadeiramente principal. Guisado de frango com quiabos e abóbora-d’água (ad libitum o jiló) e angu, prato em aquarela, deslizando viscoso como a vida mesma, mas pingante de pimenta”.
Na visita virtual que indicamos logo abaixo, você poderá conhecer também os encantadores Miguilins, jovens cordisburguenses contadores de histórias que mantêm a obra de Rosa viva e pulsante. Afinal, “as pessoas não morrem, ficam encantadas”. Os Miguilins – nome inspirado no menino míope, personagem considerado autobiográfico da obra Manuelzão e Miguilim, fazem um lindo trabalho, que envolve conhecimento, admiração, identificação e beleza. É de emocionar!
“O doutor entendeu e achou graça. Tirou os óculos, pôs na cara de Miguilim. E Miguilim olhou para todos, com tanta força. Saiu lá fora. Olhou os matos escuros de cima do morro, aqui em casa, a cerca de feijão-bravo e são-caetano; o céu, o curral, o quintal; os olhos redondos e os vidros altos da manhã. Olhou mais longe, o gado pastando perto do brejo, florido de são-josés, como um algodão. O verde dos buritis, na primeira vereda. O Mutum era bonito! Agora ele sabia.”
Você poderá também (sugerimos fortemente!) caminhar pelas ruas tranquilas de Cordisburgo, essa “cidadezinha não muito interessante”, nas palavras de Rosa, mas “sim, de muita importância” para ele. O passeio acompanhado pela leitura de trechos de seus livros e entrevistas será uma experiência prazerosa e tocante.
Trechos como esse, de seu discurso de posse como sócio titular na Sociedade Brasileira de Geografia, em 1945, que é um convite a arrumar as malas e partir – não sem antes pendurar o caderno de anotações no pescoço, como fazia o escritor:
“Ainda agora, faz menos de uma semana, acabo de regressar de uma excursão de férias, extenuante mais proveitosa, realizada apenas para matar saudades da minha região natal e para rever velhos poemas naturais da minha terra mineira. Quanta beleza! Ávido, fiz, num dia, seis léguas a cavalo, para ir contemplar o rio epônimo – o soberbo Paraopeba – amarelo, selvagem, possante. O “cerrado”, sob as boas chuvas, tinha muitos ornatos: a enfolhada capa-rosa, que proíbe o capim de medrar-lhe em tôrno; o pau bate-caixa, verde-aquarela, musical aos ventos; o pao santo, coberto de flores de leite e mel; as lobeiras, juntando grandes frutas verdes com flôres rôxas; a bôlsa-de-pastor, brancacenta, que explica muitos casos de “assombrações” noturnas; e os barbatimãos, estendendo fieiras de azinhavradas moedinhas. Os campos se
ondulavam, extensos. Sôbre os tabuleiros, gaviões grasniam. A Lagoa Dourada, orgulho do Município, era um longíquo espêlho. A Lagoa Branca, já hirsuta de juncos, guarda ainda o segredo do seu barro, que, no dizer da gente da terra, produz, na pele humana, intensa e persistente comichão. Buritís, hieráticos, costeiam, por quilômetros, o Brejão do Funil, imenso, onde voam os cócos e se congregam, às dezenas as garças. E, enfim, do “Alto Grande”, mirante sem prêço, a vista se alongava, longíssima, léguas, até o azulado das montanhas, por baixadas verdes, onde pedaços do rio se mostravam, brilhantes, aqui e ali, como segmentos de uma enorme cobra-do-mato. Dois dias depois, estava eu visitando, em Cordisburgo – meu torrão inesquecível – a maravilha das maravilhas, que é a Gruta do Maquiné.”
Fica aqui então o convite para você conhecer e se encantar com a história de Guimarães Rosa e também para pôr a atenção sobre a relação que temos com o lugar de onde viemos, o lugar onde vivemos, sobre a importância de nossa infância, das relações, das memórias. A casa pode ser uma janela para o mundo! Boa viagem!
“O sertão está em toda parte, o sertão está dentro da gente. Levo o sertão dentro de mim e o mundo no qual vivo é também o sertão”.
Agradecimentos: Museu Casa Guimarães Rosa | Secretaria de Estado de Cultura e Turismo – SECULT, Governo do Estado de Minas Gerais [Cordisburgo, MG] ; Ronaldo Alves
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A visita virtual ao Museu Casa de Guimarães Rosa e pelas ruas de Cordisburgo pode ser feita clicando aqui.
Conhecendo Museus
A obra audiovisual Conhecendo Museus apresenta, com detalhes, os principais museus do Brasil. O Museu Casa Guimarães Rosa é um deles.
Veredas da Liberdade
A história da revista Problemas Brasileiros (PB) atravessa 57 anos dedicados ao debate de aspectos da identidade nacional. As mais de 450 edições refletem sobre soluções aos percalços socioeconômicos e culturais do País. No artigo “Veredas da Liberdade” é possível conhecer um pouco mais sobre a vida e obra de Guimarães Rosa.
Inspiração
O programa Literatura apresenta a trajetória do autor através de entrevistas com parentes, amigos e estudiosos de sua obra. O vídeo usa o acervo da TV Cultura para mostrar como as histórias e a linguagem única do escritor serviram de inspiração para filmes, músicas e exposições
Onde a casa mora em nós
Nestes tempos de distanciamento social, a série “Onde a casa mora em nós” convida para um passeio diferente, sem sair do lugar. Uma viagem que se propõe a ressignificar a presença da casa para além das paredes, para onde ela vive em cada um de nós. Para inspirar essa reflexão, vamos viajar pelos significados e memórias que vivem em casas de artistas e de personagens do cotidiano de nossas cidades. Um chamado para, junto com o Turismo Social do Sesc em São Paulo, aproveitarmos este raro momento de pausa e emergirmos com um novo olhar sobre nossa própria casa e sobre nós mesmos. Para saber mais clique aqui.
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