OS DIAS CONTADOS | Crônica do psicanalista e escritor Caio Garrido

01/09/2022

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ERA INÚTIL ESTARMOS BEM PERTO UM DO OUTRO,
PERMANECÍAMOS COMO TRÊS SERES ISOLADOS QUE VEEM A NOITE PELA PRIMEIRA VEZ.

RAINER MARIA RILKE

Leia a edição de setembro/22 da Revista E na íntegra

Antes do ponto em que pudéssemos voltar a sonhar, era inútil ter esperança.

Nascido em maio de 2020, quando minha incompleta cabeça mal acabara de apontar para o mundo, desde o escuro da extensão do corredor cósmico, fui de encontro à sedução que é a esperança: ela era feita de duas cabeças – auréolas de ouro –, cabelos compridos, cheiro divino e bom que é o diabo – apesar de todo aquele sangue escorrendo solto.

Mas estranho mesmo foi me enfiarem rosto abaixo em uma daquelas cabeças com um bico vistoso na frente, e eu, subindo e descendo a boca, enquanto sugava aquele suco gostoso.

Não eram tantas pessoas falando ao meu redor enquanto eu chorava ou rugia, mesmo depois daquele acalantozinho, bem parecido com o que eu sentia antes de beijar a luz. Fiquei feliz quando alguém cortou meu cordão. Uma força me perpassou de cima a baixo, como se pusessem potência de liberdade dentro de mim, o corpo querendo dizer suas próprias palavras em forma de movimento e som.

E logo quando subi meus olhos – ainda que sem uma imagem clara – à direção dos olhos sobrenaturais de minha mãe, adormeci. E sonhei.

Tem gente que acha que bebês não sonham. Não só sonhamos, como é o lugar que inteiro nos cabe; a montanha mágica de nossa mais importante formação. Que é diferente, paradoxal, de trás pra frente. Aquilo que acontece nesses primeiros momentos de vida é determinante para todo o resto. Se algo der errado nesse ponto, a impossibilidade de muitas coisas lá na frente nos acena.

Imaginem como a nossa mente funciona, como se dá o nosso sonhar, enquanto nos deleitamos com nossa cota diária de 18 horas de sono. Ninguém vai produzir tanta imaginação como nós, recém-nascidos. 

Mas voltando ao sonho: acho que ele era apenas feito de água caindo sobre mim. Talvez a água do meu primeiro banho.

Como fui informado das notícias assim que tomei esse banho, todos usando um tal de celular, tomei nota de uma coisa nada boa que senti através de meus impacientes pais, que não saberão o que fazer comigo nos próximos dias e meses e anos. Eles, alarmados, diziam e pensavam: havia uma tal de pandemia mortal em curso. Contavam cada dia como passos em direção a um futuro prenhe de incertezas.

Meu pai havia caminhado no dia anterior, à noitinha. Sem luz no parque, viu uma estranha aparição à sua frente. Mais temeroso que o envenenado atual presidente de um Brasil alucinadamente imaginário, o que ele viu era um pequeno ser, que nem nascido era. Ele disse que, logo depois, disparou na caminhada e correu. Errou um caminho e veio sem querer parar no hospital. Errar é revelar-se.

Era inútil estar bem enquanto os cavalos doidos todos estavam soltos, dizia, na salinha que só permitia a presença dos pais e médicos.

Inútil ir pra outro mundo também. Deves ficar aqui, pai, de pé, e aguentar essa jornada.

Aguentar esses demônios, que tentarão à distância provocar-nos a dor mais aguda. Outros farão que a aglomeração mais intensa aprofunde a sensação de isolamento e tormento. A saída da pandemia despeja-nos uma falta de paz, com muitos se sentindo mais isolados que antes.

Meu pai, nascido em 1978, é quem deveria ter sonhado esse sonho. Esses adultos não sabem mais sonhar. Quer dizer, quando falam em imaginação, é porque foram sonhados pela gente.

E o incrível é que fomos sonhados por eles. Após alguns dias nesse mundo, ouvi de minha mãe que meu pai, já há algum tempo, perdera a capacidade de ter esperança por ter visto demais.

O que será dele então, com nossa presença? Estes pequenos seres, aparições da esperança, com seus olhos brilhantes… Como compensação, podem arrastá-los à outra margem? Não à terceira margem do rio ou qualquer terceira via; mas para um mundo em que a casa feita de barro era o bairro, e o bairro era a cidade, e a cidade o nosso país. E o país era o mundo, e por pedra chamávamos Terra. E por toda e qualquer pedra chamamos eternidade.

É esta pedra-barco que partirá para sempre. Nininin. Me fara niná. À noite. Em claro. No teatro dos sonhos. De onde um navio sempre parte. E olhamos pra trás com os lenços balançando ao vento com saudades do que fomos e não fomos.

E não falo em nostalgia. Com algumas semanas de vida, ouvi meu pai falar de Hannah Arendt; da precaução necessária que devemos ter quando um político desperta a nostalgia em vez de falar do futuro e ofertar esperança. E como falar sobre volta às origens sempre pode acabar em fanatismo e totalitarismo. É de um outro tipo de esperança que precisamos.

Talvez um “torna-te quem tu és”, grande máxima de Nietzsche. Ver para dentro. Insight. E o que não falta em mim é desejo e sonho. Por e para isso vale a pena lutar. Talvez junto ao meu pai, quem sabe…

Ouço dele, à medida que cresço, que aquilo que acontece hoje no Brasil é um ataque sádico invejoso contra a liberdade. Alardeiam e vangloriam-se que o que fazem é em prol dela, mas tudo o que fazem é atacar toda e qualquer liberdade.

Por isso os bebês não precisam enxergar no começo da vida. Iria mais confundir do que revelar. Poderiam nos acusar de mais inveja – uma espécie de “olho-gordo”, já que o primeiro objeto da inveja seria o seio nutridor. O sentimento mui raivoso de que outra pessoa possui e desfruta algo desejável – esse impulso invejoso que é o de tirar este algo ou de estragá-lo –, caracteriza muito bem, segundo meu pai, essa turma de maloqueiros que assumiu o poder. Para tais desalmados, e desamamentados, alguém sempre esteve “mamando” antes deles, alguém sempre está vivendo na “mamata”.

Pois bem, nós, bebês, não temos tanta inveja e voracidade. Só queremos amor. E sentimos tudo, vocês nem imaginam. Quando nascemos, vocês contam cada dia, pois cada um deles merece ser vivido. Com as rajadas do tempo, passam a contar pela metragem dos anos. E vinda a velhice ou a rabugice, olham para o passado e perdem as contas, a empatia, a cabeça e todos os temores.

CAIO GARRIDO é psicanalista e escritor. Tem cinco livros publicados, entre romances, poemas e crônicas, sendo o último o recém-lançado Paniricocrônicas: Crônicas dos Sonhos em Tempos de Pandemia (Patuá, 2021), fruto de projeto e obra contemplados pelo programa ProAC (da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo).

A EDIÇÃO DE SETEMBRO/22 DA REVISTA E ESTÁ NO AR!

Neste mês, a reportagem principal (Palcos por todos os lados – LEIA AQUI) conta como espaços não convencionais, como hospitais, barcos, apartamentos e estações de trem, viram protagonistas de espetáculos criados para serem encenados fora do teatro. Esses trabalhos subvertem a lógica da tradicional caixa cênica, fomentam novas narrativas e borram as fronteiras entre artistas e plateia. Conheça, ainda, os destaques da edição 2022 do Mirada – Festival Ibero-americano de Artes Cênicas, que acontece de 9 a 18 de setembro, em Santos (SP).

Além dessa reportagem, a Revista E de setembro/22 traz outros conteúdos: especialistas da área da saúde e do esporte defendem que a escolha da atividade física mais apropriada para cada pessoa pode ser definida com a ajuda do autoconhecimento; entrevista com a antropóloga e historiadora Lilia Schwarcz que propõe um novo olhar para o passado, incluindo outras narrativas e protagonistas na trajetória recente de nosso país; conheça a trajetória de Letieres Leite, maestro baiano cuja sonoridade ancestral ampliou as bases da música afro-brasileira; a jornalista e cofundadora da Agência Pública Natalia Viana é a convidada do Encontros desta edição e fala sobre os desafios do jornalismo investigativo; conheça projetos arquitetônicos que, com o objetivo de pautar a sociedade e a vida coletiva, refletem os desafios da cidade contemporânea; depoimento da atriz e roteirista Cláudia Abreu, que esteve em cartaz no Sesc 24 de Maio, em julho, com o monólogo Virginia, de sua autoria – sobre a obra da escritora britânica Virginia Woolf; artigos de Fernanda Kaingáng e André de Paiva Toledo refletem sobre conceito, história e questões jurídicas da biopirataria, que consiste na exploração ilegal da biodiversidade e dos saberes tradicionais associados a ela; na seção literária, texto do psicanalista e escritor Caio Garrido sobre os dilemas existenciais de um bebê nascido em maio de 2020; o Almanaque desta edição dá seis dicas de lugares em São Paulo para desconectar da cidade, olhar para dentro de si e relaxar.

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