Por Baobá*
Quando recebi o convite do Sesc Guarulhos para uma troca na íntegra com Kalú e nas redes sociais com todes que alcançarmos, sobretudo as juventudes, com o tema “Questões de gênero e as juventudes: Que papéis te representam”, eu só podia trazer uma narrativa que é baseada em experiências e pesquisas muito pessoais e diversas sem um ponto de partida ou de chegada, desde pesquisas sob o meu próprio corpo, até as procuras rápidas no Google, documentários no YouTube, artigos acadêmicos da internet que vasculhei ao longo do meu processo de percepção como uma pessoa não-binária. Logo, tudo o que aqui for dito, não é uma verdade absoluta, muito menos o correto, é apenas parte do meu repertório e da construção da minha identidade. Perdão se não cito aqui minhas referências acadêmicas, mas começo com uma reflexão: quantas pessoas de nós, não-binárias, estão escrevendo sobre si mesmas? E quantas dessas produções chegam até nós?
É desafiadora, e eu diria que é revolucionária, a crescente de auto-declarações de pessoas não-binárias na atualidade, em sua maioria pessoas das juventudes periféricas e marginalizadas que vêm se desprendendo das amarras ocidentais e de um olhar colonial sob o gênero pautado na dicotomia e na polarização da cisgeneridade: as limitações de ser homem ou ser uma mulher, como se nada mais houvesse além desses espectros de possibilidade de existências.
Tá bom. Beleza! Mas o que seria afinal uma pessoa não-binária?
Bom, para entender a não-binariedade é preciso compreender ao que ela se opõe e se subverte. A binariedade, que existe em vários contextos, um exemplo dos primeiros ideais binários que concebemos aqui no ocidente, no nosso imaginário coletivo, é a ideia do bem e do mal, esses polos que se complementam e, ao mesmo tempo, se opõem, criando uma ideia de verdade e/ou mentira absoluta, enrijecendo e limitando esses extremos a essas duas possibilidades apenas.
Quando se trata da binariedade do gênero, estamos falando do homem, o masculino, e da mulher, o feminino, sistemas construídos social e culturalmente pautados em ideais religiosos e biologicistas, como a cisgeneridade, que é o sistema que atribui às crianças no momento de seu nascimento a partir da sua genitália significados determinantes, pautados no binário do gênero, definindo os seus papéis sociais, suas formas de se portar, de se vestir, de se nomear, de se relacionar. Logo, o gênero binário se mostra um pilar fundamental para a formação das sociedades que conhecemos por aqui.
Eae? Conseguimos entender o que é binariedade? Então bora falar sobre a não binariedade de fato!
Pra mim, a resposta está no próprio termo, e depois de entender a binariedade já é de se imaginar o que é a NÃO binariedade de gênero: é exatamente o óbvio, o oposto, a subversão aos sistemas binários de gênero, mas, ainda assim, tem dúvidas? Vamos lá…
A não-binariedade é um termo guarda-chuva criado para abarcar outras identidades e possibilidades de gêneros existentes nesse “vão” entre as bolhas binárias da cisnormatividade, sendo assim também considerado um gênero, porém transgressor à norma. Uma pessoa não-binária é uma pessoa transgênero, existindo várias classificações dentro deste termo (agênero, neutrois, gênero-fluído, bigênero, transmasculino, transfeminino…), podendo ser adotadas ou não.
Fato é que ainda existe uma grande confusão que a cisgeneridade (esse grupo de pessoas que se identificam com o gênero atribuído a eles na infância) no que diz respeito aos pronomes e, principalmente, aos pronomes que se devem usar com pessoas trans não-binárias. Mas, se estes forem incapazes de transpor a ideia ultrapassada das caixinhas do rosa e do azul, do menino e da menina, se tornará impossível continuar essa conversa, e se tornaria mais complexo ainda entender os pronomes utilizados por pessoas transgênero (e aqui eu escolho o uso desse termo para abranger a todas as possibilidades de pessoas trans como transexuais, travestis, não-binárias…) dissociando este, da sua expressão de gênero (a forma que uma pessoa gosta de expressar sua identidade com vestimentas, acessórios, modificações corporais etc) do seu desejo e atração sexual (a forma e/ou por quem aquela pessoa se sente atraída) e até mesmo da sua própria identidade (gênero o qual cada pessoa se identifica). É importante que essas nomenclaturas sejam separadas e observadas individualmente. Cada cabeça terá uma sentença, não existe uma caixa, um jeito definido, é preciso se informar, perguntar, qual pronome, qual identidade, a fim de respeitar e outre.
Quando eu falo a confusão da cisgeneridade em relação aos pronomes, é porque percebo uma movimentação nas redes sociais em massa que desvalida, por exemplo, os pronomes neutros, os quais vêm sendo inseridos na Língua Portuguesa para não delimitar o gênero de quem se fala num contexto geral, ou num contexto de preferências individuais, mesmo de algumas pessoas em serem tratades nem como ele, nem ela, mas como elu, ile, delu, dile. A partir dessa movimentação e desse questionamento sobre a validade dos pronomes, não podemos limitar essa discussão apenas ao pronome neutro, a língua se transforma e vem se transformando no aqui e agora, o pajubá tá aí, o pretoguês tá aí, as variações de cada estado estão aí, criando também possibilidades e significados distintos para além das existentes. Isso acontece o tempo todo, basta observar. Quando eu digo revolucionário, é porque é, é uma transformação radical, em todas as instâncias, política, ideológica, social, cultural, é um marco de um tempo que vem sendo construído com suor e sangue por nossos mais velhes, como Marsha P. Johnson, Bayard Rustin, Silvetty Montilla, Madame Satã, Lacraia. Estamos construindo uma libertação, uma abolição contra as hierarquias do patriarcado, da heteronormatividade, da binariedade, um processo que estamos a muitos passos de chegar ao fim, mas que muito já conquistamos.
Com muita convicção, a religião cristã, na grande maioria das suas vertentes e amplamente difundidas nesse território chamado Brasil, contribui para essa confusão, para essas violências, para as estatísticas de morte entre pessoas LGBTQIA+, sobretudo entre pessoas T’s; contribui para as violências intrafamiliar, que nos nega e nos tira raivosamente qualquer possibilidade de pertencer a uma família e de solidificar esse pilar tão importante nas nossas formações, nos tornando vulneráveis em tantos aspectos, nos negando o direito básico à vida, à educação, ao trabalho. A maioria das vezes somos nossas próprias famílias, criamos nossas próprias redes de apoio, nossos próprios encontros e espaços de celebração, de estudo, de moradia, de trabalho alternativo e independente, como grandes artistas, criativos como instinto e necessidade de subsistência encontramos nas artes possibilidades de reinventar nossas histórias, de construí-las como desejamos e perceber o que desejamos.
Por maior que seja a força do conservadorismo, a nossa força de resposta tem sido em dobro, em triplo, nossos rostos, nossos corpos têm ocupado espaços e lugares que nos foram negados historicamente e em resposta à minha própria pergunta lá no início: “Quantas pessoas de nós, não-binárias, estão escrevendo sobre nós mesmas?” Eu digo que hoje somos narrativas possíveis e enxergamos narrativas possíveis sobre nós, existem pessoas de nós escrevendo narrativas possíveis sobre nós, pessoas de nós cantando sobre nós, pessoas de nós legislando sobre nós, pessoas de nós criando audiovisual sobre nós, estamos em todos os lugares, desconstruindo padrões que nos foram inseridos desde muito jovens e na formação das nossas identidades e personas, mas isso não basta, a representatividade não basta, a nossa cara estampada nas publicidades de grandes marcas não basta, é preciso mais, é preciso assegurar as nossas vidas, é preciso construir espaços seguros para nós para além das televisões, da internet, das revistas, mas em todos os espaços, seja no mercado, seja no banheiro público, seja sob a luz do dia.
Me encaminhando para o final deste texto em uma muvuca de sentimentos pessoais e explicações didáticas sobre identidades, sistemas e complexidades. Repito, não quero chegar com este a lugar algum, não tenho um ponto de partida, tão pouco um ponto de chegada, mas quero deixar esse emaranhado como um registro de um tempo, como reflexão de um momento, um período, para que os meus se assim lerem se identifiquem ou não, me questionem, se questionem; para os leigos, que aprendam a partir dessa pequena introdução. E para Baobá do futuro, que leia e refresque a memória, para que nunca se esqueça dos processos, de que tudo é um momento passível de transformações.
Agradeço ao Programa Juventudes do Sesc Guarulhos pelo convite e por viabilizar este espaço e essa troca. Agradeço também ao Kálu, ao Noá e a Makoto (equipe de captação e edição de imagens do vídeo) por formar essa equipe incrível de não-bináries (risos) e até breve.
*Baobá (@baobaorim) tem 23 anos e é artista guarulhense.
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