Essa história poderia ter começo, meio e fim. Porém, quando se trata de Elza Soares, borram-se marcos temporais. É que a “Mulher do fim do mundo”, ou a mulher cujo nome é agora – em referência ao documentário My name is now, Elza Soares (Dir. Elizabete Martins Campos, 2014) –, seguirá como inspiração para esta geração da música e para aquela que virá amanhã e depois de amanhã. A menina de 13 anos e um filho carregava lata d’água na cabeça, subindo e descendo o morro de Moça Bonita, favela na capital fluminense, até deixar o Brasil boquiaberto quando soltou sua voz rouca e única na Rádio Tupi. No programa de calouros de Ary Barroso, ela disse ter vindo do “planeta Fome”, de onde partiu mundo afora levando seu samba, suingue e sensibilidade. Elza caiu e se levantou inúmeras vezes ao longo de mais de 60 anos de carreira e se tornou uma grande protagonista da história da música brasileira.
“Elza passou por diversos momentos da história da nossa música. Ela foi para o programa de rádio do Ary Barroso defender um samba. Aliás, ela começou cantando samba e tentaram encaixá-la na bossa nova, mas sua voz tinha muito alcance, poder e impacto para a bossa nova. Então, ela se destacou imediatamente como uma intérprete diferente, fora de qualquer padrão. Ela tem um acento do jazz sem nunca ter estudado ou participado de rodas de jazz, pelo contrário, ela participava de rodas de samba”, conta a jornalista, consultora e curadora musical Patricia Palumbo.
ELZA SOARES, em Depoimento publicado na Revista E nº 260, de fevereiro de 2018
Ao longo de 91 anos de vida, a artista driblou preconceitos e violências na vida e na música, por ser mulher, por ser negra, por ser artista, por ser Elza. Misturou samba e jazz antes da bossa nova, cantou na gafieira, gravou discos premiados que atravessaram as décadas de 1960, 1970, 1980 e os últimos 20 anos [leia boxe Ao pé do ouvido]. Enfrentou a ira dos jornais e do público pelo casamento com o ídolo do futebol Garrincha; teve sua casa no Rio de Janeiro baleada durante a ditadura; passou um período de exílio na Itália, onde conheceu Ella Fitzgerald e foi convidada pela diva do jazz a assumir seu lugar na turnê Ella canta Tom Jobim.
Na vida de Elza tudo veio a galope, sem pedir licença, sem avisos. E mesmo após altos e baixos, após confessar estar descrente da música nos anos 1980, ela ressurgiu como a fênix [figura mitológica do pássaro que renasce das cinzas] que tinha tatuada na perna. Em 1985, gravou Língua, com Caetano Veloso, e foi abraçada pela música pop. Desde então, recebeu novos abraços de sonoridades contemporâneas e de jovens artistas com quem passou a trabalhar, incorporando, a partir de 2000, do rap à música eletrônica.
ELZA SOARES, em Depoimento publicado na Revista E nº 260, de fevereiro de 2018
A jornalista Patrícia Palumbo indica e comenta cinco discos essenciais de Elza Soares:
Nesse disco a gravadora desejava que a Elza se aproximasse mais da bossa nova e por isso o título. Mas, já na primeira faixa, ele mostra que a intérprete está muito mais para o jazz, para o samba, para Elza Soares do que para o movimento de um “banquinho e um violão”.
Disco histórico gravado com o grande e maravilhoso Wilson das Neves, ainda que tenhamos aqui Samba de Verão, O Barquinho, da bossa nova, a gente tem Mulata Assada e uma Elza muito mais para o sambalanço do que para a bossa. E claro que Wilson das Neves dá o molho que combina tanto com ela. Uma parceria absurdamente importante.
Nesse disco, ela começa a mostrar na plenitude toda a abrangência do seu canto, do seu suingue e do seu balanço. Tem gravações espetaculares e, aí sim, o sambalanço está totalmente presente. É um disco fundamental para entender o alcance dessa voz, o alcance dessa intérprete.
Nele eu vejo a Elza Soares começando a se relacionar e a transitar com uma música mais contemporânea, a música do século 21, por exemplo em Computadores fazem arte, uma canção do Fred Zero Quatro. É um disco cheio de eletrônica e de DJs participando, e ela se mostra aqui, mais uma vez, a grande intérprete contemporânea. Seja nos 1960, nos anos 1970, nos anos 1980, nos anos 2000, Elza acompanha o seu tempo.
A música Dor de cotovelo, que dá nome a uma das faixas, foi feita pelo Caetano Veloso especialmente para ela, uma das maravilhosas canções que compõem esse disco. Vale lembrar que antes ela fez Vivo feliz e, depois, Do cóccix até o pescoço. Esses dois discos trouxeram a Elza para o ano 2000 e foi a partir desses discos que vieram os demais, que são A mulher do fim do mundo (2015) e esses outros que ela fez agora com essa turma de São Paulo. Mas esse disco tem canções excepcionais, arranjos maravilhosos, Arnaldo Antunes, Carlinhos Brown, Wisnik, Caetano, Chico, todo mundo compondo especialmente para ela. É um disco lindo!
Generosa em palavras, gestos e parcerias, Elza Soares teve e ainda tem um papel decisivo na carreira de muitos artistas da música brasileira. “Toda cantora tem alguma coisa de Elza Soares”, acredita a jornalista Patricia Palumbo. Esse é o caso da cantora, diretora e atriz Larissa Luz. “Eu a conheci pessoalmente numa festa de lançamento de um edital onde cantei. Ela me me disse coisas lindas. Fiquei emocionada lembrando a minha adolescência nos intervalos da escola, tentando reproduzir a voz dela pelos corredores. A Elza sempre foi referência mesmo quando eu não tinha noção do que significava ter essas referências”, recorda.
Mas, foi em 2016, durante as gravações do segundo álbum de Larissa Luz, Território Conquistado, que a admiração ganhou corpo também como parceria musical. “Foi logo depois desse encontro que começamos uma aproximação imersiva e eu mergulhei na sua existência. Convidei a Elza para participar do meu disco e foi mágico poder dar mais esse passo na nossa construção, vê-la em ação no estúdio. Sentir o seu pisar no mundo era sempre aprendizado e foi assim sempre que estivemos juntas. Cada conversa era identificação e admiração profunda”, compartilha.
Larissa Luz atuou e dirigiu o musical Elza, que estreou em 2018 e foi apresentado no Sesc São Paulo, nas unidades de Pinheiros, Guarulhos, Santos e Sorocaba e recebeu prêmios e arrebatou mais de 120 mil espectadores. No espetáculo, 10 atrizes de corpos, timbres e idades distintas nos convidavam a vestir a pele da “Mulher do fim do mundo”. “Deixar a narrativa de Elza me atravessar fisicamente e emocionalmente foi engrandecedor. Cresci artisticamente e humanamente. Ampliei minha visão de tudo e comecei a enxergar milhões de outras possibilidades de existência e resistência. Viver Elza foi libertador e cantar Elza foi demasiadamente emocionante”, complementa.
No ano de 2013, em entrevista à jornalista Patricia Palumbo, registrada no livro Vozes do Brasil – Entrevistas reunidas (Edições Sesc São Paulo, 2019), Elza compartilhou essas nuances que seu trabalho como intérprete foi ganhando. “Eu tinha vários discos da Elza empilhados e fui conversando com ela a partir deles. E foi muito curioso porque ela foi me contando a vida dela ao mesmo tempo em que eu mostrava os discos e destacava algumas músicas. A cada canção, uma passagem da vida dela tinha ora tristeza ora um acontecimento muito impactante: a morte de um filho, o exílio, o preconceito que sofreu, mas também grandes alegrias que a música deu. Tem, inclusive, uma passagem no livro em que ela diz que é abençoada pela música, e que a música foi o que na verdade a levou tão longe e fez com que conseguisse sempre dar a volta por cima”, relembra Palumbo.
A voz do milênio, título que ganhou da BBC de Londres, cantou até o fim. Elza Soares faleceu em sua casa no Rio de Janeiro, dia 20 de janeiro, deixando trabalhos inéditos para serem lançados ainda neste ano: dois documentários sobre sua vida e música, além de um álbum com canções inéditas. “Já dei muitos passos na vida e sempre andei pra frente, construindo meu caminho e deixando pra trás o passado. É tão difícil dar conselhos… Mas esse é o conselho que eu dou. Não podemos ficar calados. O país precisa de ajuda e só nós podemos fazer isso, juntos. Acredito muito no povo e acredito em mim, nunca parei de acreditar. Isso é o que faz com que eu siga em frente. O mundo não muda tanto, a gente é que muda”, disse a cantora à Revista E, em fevereiro de 2018.
Direta ou indiretamente, lá está Elza Soares na memorabilia afetiva do Sesc São Paulo. Em fotografias, registros de shows nas unidades do Sesc, preservadas pelo Sesc Memórias; em autógrafo no camarim do teatro do Sesc Pompeia; em vídeos de shows exibidos pelo SescTV e no canal do YouTube do Sesc São Paulo. Elza está até mesmo na Caixa Preta de Itamar Assumpção, lançada pelo Selo Sesc.
“Parte considerável de seus admiradores conhece sobretudo essa faceta mais recente, na qual se destaca a imagem quase mítica da ‘Mulher do fim do mundo’. Eu, mais velho que muitos desses fãs, acompanhei as metamorfoses dessa artista em suas múltiplas fases. Sinto-me grato e energizado pelas memórias que guardo. Nos momentos em que gigantes como ela nos deixam, fica o convite – sussurrado de modo suingado e rascante, como era seu estilo – para que estejamos à altura de seu legado. Não será tarefa das mais fáceis, mas Elza nos ensinou os improvisos necessários para esses casos”, escreveu Danilo Santos de Miranda, diretor do Sesc São Paulo, em sua página na rede social Instagram.
Para sempre, Elza:
Em junho de 2021, mês de comemoração de seus 90 anos, Elza Soares fez show direto de sua casa no #EmCasaComSesc, disponível no canal do YouTube do Sesc São Paulo. A apresentação intimista foi ao lado do rapper Flavio Renegado e do músico JP. Silva e reuniu sucessos da sua discografia. Acesse: www.youtube.com/watch?v=DO7-sPRb5TU&t=22s.
Vozes do Brasil – Entrevistas Reunidas (2019)Neste livro, a jornalista e radialista Patricia Palumbo reúne 33 entrevistas com artistas representantes da MPB contemporânea que flertam com o pop – vice-versa. Depoimentos de músicos afinados a estilos ou movimentos que colaboraram para a constituição da MPB, como a bossa nova, o samba ou a tropicália. Destaque para a entrevista com Elza Soares, seus discos, sua vida e “as voltas por cima” da intérprete. Leia: https://portal.sescsp.org.br/online/edicoes-sesc.
Pretobrás II – Maldito vírgula (Caixa Preta), de Itamar AssumpçãoLançada pelo Selo Sesc em 2013, a Caixa Preta é composta por dez discos da trajetória do músico Itamar Assumpção, lançados entre 1980 e 2004, remasterizados, além dois discos inéditos produzidos pelo Selo Sesc a partir de gravações de voz e violão deixadas pelo Nego Dito. Com produção e direção musical de Beto Villares e Paulo Lepetit, no álbum Pretobrás II – Maldito vírgula, a cantora interpreta uma das faixas escrita por Itamar Assumpção em sua homenagem: a música Elza Soares: “Desde que me entendo por gente /Eu sambo, eu faço o que gosto /My soul is black, meu sangue é quente”.
Elza Soares: A mulher do fim do mundo
Em outubro de 2016, o Sesc Pinheiros realizou o show A mulher do fim do mundo, espetáculo, que marcou o lançamento em vinil do álbum homônimo de 2015, que recebeu o Grammy Latino 2016 na categoria Melhor Álbum de Música Popular Brasileira, entre outros prêmios. Nele, a cantora é acompanhada pelos músicos Kiko Dinucci, Marcelo Cabral, Rodrigo Campos, Romulo Fróes e Guilherme Kastrup, produtor musical do show, e conta com participação especial do cantor Rubi. Assista: www.sesctv.org.br/elza.
A artista também participou do especial Compacto, no qual conta o famoso episódio da sua estreia no palco de Ary Barroso. Confira: www.youtube.com/watch?v=gvDEePnltAw&t=9s.
A edição de março/22 da Revista E está no ar!
Nas páginas deste mês, você conhece o projeto “Infindável Viagem: Takeo Sawada – artista, educador” (imagem de capa), composto por ações no Sesc Thermas de Presidente Prudente e no Sesc TV.
Além disso, a revista de março traz outros destaques, como a exposição “DARWIN, O ORIGINAL”, do Sesc Itaquera; um levantamento que, no mês da mulher, apresenta as ruas da capital paulista que homenageiam personalidades femininas; um depoimento dos jornalistas Tatiana Vasconcellos e Nando Andrade sobre sua rotina no rádio; um perfil da diva Elza Soares (1930-2022); uma reportagem sobre iniciativas que mostram a força de uma economia baseada na solidariedade e na coletividade; um passeio pelas ilustrações criadas para o experimento literário Folhetim, do Sesc Pompeia; uma entrevista com o economista Marcio Pochmann sobre modelos econômicos e o futuro da sociedade; e artigos que abordam os desafios do envelhecimento das pessoas LGBTQIA+.
Para ler a versão digital da Revista E e ficar por dentro de outros conteúdos exclusivos, acesse a nossa página no Portal do Sesc ou baixe grátis o app Sesc SP no seu celular! (download disponível para aparelhos Android ou IOS).
Siga a Revista E nas redes sociais:
Instagram / Facebook / Youtube
A seguir, leia a edição de março na íntegra. Se preferir, baixe o PDF para levar a Revista E contigo para onde você quiser!
Utilizamos cookies essenciais, de acordo com a nossa Política de Privacidade, para personalizar e aprimorar sua experiência neste site. Ao continuar navegando, você concorda com estas condições.