Temos vivenciado enormes transformações nas relações dos pais com seus filhos. A que se deve essa mudança? O que torna um pai presente? Essas são perguntas que o webdoc Paternidades pretende responder, através de depoimentos de pais e especialistas no assunto.
O documentário integra a ação ‘Cuidar de Quem Cuida’, que abordou o tema em diversas programações, de agosto de 2018 a abril de 2019, com objetivo de refletir sobre as realidades do exercício paterno no cenário atual.
Para o lançamento de Paternidades na internet, convidamos Benedito Medrado e Jorge Lyra, professores, psicólogos e fundadores do Instituto PAPAI, para escreverem um ensaio sobre o tema, o mesmo a que eles se dedicam há décadas. Esperamos que a leitura enriqueça ainda mais a sua experiência audiovisual!
Por Benedito Medrado* e Jorge Lyra**
Memória é nosso bem coletivo mais precioso e, com base nela, escolhemos as linhas a partir das quais (a)bordamos algumas das ideias que gostaríamos que transbordassem na leitura deste texto.
Precisamos confessar que resistimos muito a produzir este ensaio, quando recebemos o convite. Mais de 20 anos trabalhando com o tema da paternidade, acabamos criando certa impaciência com material alusivo ao tema, seja em formato de produções artísticas, jornalísticas e especialmente propagandas no período próximo ao dia dos pais. Porém, ao assistir ao excelente documentário “Paternidades” produzido pelo Sesc São Paulo, no âmbito do projeto “Cuidar de quem cuida”, fomos tomados por certo otimismo ao ver que, sim, muita coisa mudou nas últimas décadas e, efetivamente, podemos dizer, contrariando Belchior, que não somos mais os mesmos, nem vivemos como os nossos pais. A experiência pessoal e coletiva da paternidade não é mais a mesma daquela que gerou a institucionalização do dia dos pais.
Das memórias e seus contornos
Quando nos arrepiamos ao ver um belo e bem produzido comercial de TV que explora nossas sensibilidades e pode nos levar às lagrimas, ao abordarem o afeto entre um pai e seu filho (ou filha), muitas vezes ignoramos que essa memória afetiva é tecida entre linhas que vão além do simples vínculo entre quem cuida e quem é cuidado. Obviamente, os efeitos (especialmente na ordem das sensibilidades) de um artefato cultural ou uma peça publicitária não se limitam às intenções de quem a produziu ou ao seu contexto de produção, mas é importante que possamos (re)conhecer as linhas dessa complexa teia que desenha a paternidade como dispositivo afetivo, mas também cultural e, portanto, político e econômico.
Vale lembrar que o dia das mães veio bem antes e com motivação bem diferente. A data foi celebrada, pela primeira vez no Brasil, há mais de 100 anos, em 1918, e institucionalizada em 1932, no primeiro mandato presidencial de Getúlio Vargas (1930-1945). A inciativa foi resultado de reivindicação da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino que considerava importante a visibilidade e valorização da experiência feminina em nossa sociedade. Lembremos que naquele ano, as mulheres conquistaram, por lei, o direito ao voto.
O dia dos pais, por sua vez, é celebrado no Brasil há menos de 7 décadas, mais precisamente desde 1953, no segundo mandato de Vargas (1951-1954). Ao contrário do dia das mães, para o “Dia do papai” (como foi originalmente chamado) não houve nenhuma demanda social ou política emancipatória. Foi uma iniciativa privada promovida por um importante publicitário e jornalista, Sylvio Bhering, à época diretor do jornal O Globo, da Rádio Globo e um dos fundadores da Associação Brasileira de Propaganda (ABP). Sua inspiração tomou como referência os Estados Unidos, cuja história atribui a institucionalização do dia dos pais naquele país à homenagem de uma filha (Sonora Dood) a seu pai, veterano de guerra (William Jackson Smart). No caso brasileiro, porém, o interesse foi genuinamente comercial: atrair anunciantes para seus veículos. A data escolhida (originalmente 16 de agosto) fazia alusão ao calendário da Igreja Católica que dedica este dia ao patriarca da família da virgem Maria, São Joaquim, avô de Jesus.
Assim, nessa trama que podemos costurar entre as narrativas norte-americana e brasileira são perceptíveis linhas de uma tríade moral que configura o poder masculino em uma sociedade patriarcal: guerra, economia, política e religião. O que quero dizer com essa introdução, é que ser pai numa sociedade patriarcal é, por princípio, um privilégio, considerado digno de homenagens a partir de atributos (força, honra, poder e riqueza) inteligíveis dentro dessa matriz patriarcal. As relações desiguais de gênero ainda são marcadas em nossa sociedade pelos polos distintos entre masculino e feminino: quem cuida dos bens e das riquezas e quem cuida da vida.
Das sensibilidades e seus transbordos
Aprendemos com o feminismo que o privado é político e que a separação entre as políticas da intimidade e as políticas públicas ou culturais mascara linhas de força que produzem opressões. Nesse alinhavo, nem toda experiência de paternidade é possível e reconhecida.
A propósito das memórias que nos afetam, lembramos de certa entrevista que realizamos em 1999 com um senhor de 74 anos, que se definia como pardo, residente na região do Belenzinho, em São Paulo, durante uma pesquisa sobre “Homens, sexualidades, direitos e construção da Pessoa” realizada em 5 países (Brasil, Nigéria, Malásia, Filipinas e México).
Nessa pesquisa, havia um roteiro pré-definido, porém na fase preparatória, inspirados na tradição da história oral, optamos por dialogar com nossos entrevistados (homens de diferentes idades e classes sociais distintas) a partir das suas memórias. Essas entrevistas iniciais foram, assim, mobilizadas a partir do convite bem “inocente”: “Gostaria de conversar com o senhor sobre sua vida”.
Joseph, aquele senhor de 74 anos, vivia na rua e dormia em um albergue administrado pela igreja católica, que acolhia mais de 3.000 homens, à época. “Tenho 9 filhos… até onde eu sei!”, nos disse ele, em tom jocoso. Havia perdido os vínculos com a família, quando não mais conseguiu desempenhar seu “papel de homem”, segundo ele, em virtude de não ter “dinheiro para sustentar a casa”. Essa era uma narrativa comum entre os que conheci naquele albergue.
Lembramos também da recorrente competência e precisão com que aqueles homens discorriam sobre sua trajetória laboral. Assim, Seu Joseph tinha uma memória (ela de novo!) invejável quando se tratava de relatar suas experiências de trabalho. Sabia “de cor e salteado” (sem recorrer a documentos, notas ou qualquer outra fonte de informação) a sequencia das “firmas” em que trabalhou. De algumas, lembrava o nome social e o nome fantasia e até o CGC, que no ano anterior à entrevista tinha passado a se chamar CNPJ, mas a nomenclatura anterior ainda persistia. Sabia com exatidão o tempo que havia passado em cada uma das empresas, a forma como foi sido admitido e também demitido. Falava com orgulho de cada experiência. Mas, ao falar sobre sua experiência como pai, a precisão e exatidão não eram as mesmas, nem sequer na hora de falar os nomes por ordem cronológica. “Não me lembro direito se Joana veio antes ou depois de Jonas, mas sei que é bem próximo”.
Essa experiência apesar de singular, não é exclusiva. Nesta mesma pesquisa ouvimos relato semelhante de Seu Adê, um senhor de 74 anos que trabalhou a vida toda em engenhos de cana de açúcar na zona da mata de Pernambuco. São narrativas que reproduzem, de algum modo, uma ordem social que posiciona as mulheres como cuidadoras “natas” (dos outros e não de si) e os homens como sujeitos que “nasceram para” serem cuidados e não para cuidar.
Assim, a separação nítida entre trabalho produtivo e reprodutivo era evidente na narrativa daquele homem e dos seus colegas. Ao longo da entrevista, Joseph nos disse que nunca havia falado antes com ninguém sobre sua vida e que, ao longo da entrevista, foi “caindo a ficha” e percebendo, entre lágrimas, o quanto havia se distanciado dos filhos e do exercício do cuidado – às vezes por não se sentir autorizado, às vezes por vontade própria – e o quanto se sentia corresponsável pelas condições em que vivia.
Novos horizontes
De fato, ainda precisamos avançar muito em nossas leituras sobre paternidade e acredito que o documentário “Paternidades” nos mostra algumas curvas e sombras que precisam tornar-se visíveis, experiências que quebram, de forma interseccional, ideais brancos, coloniais, de classe média, centrados na hetonormatividade e na cisgeneridade que marcam ainda nossas conversas e produções culturais sobre paternidade. A simples existência de pais pretos, gays e trans, apesar de condições adversas, já nos mostra traços de resistência e de possibilidades de mudança.
Precisamos também reconhecer que 5,5 milhões de pessoas no Brasil não têm o nome do pai no registro de nascimento, segundo dados recentes do IBGE. Isso não quer dizer que presença paterna é sempre possível ou desejada, afinal, essa ausência tem múltiplas determinações. Do mesmo modo, não podemos concluir que famílias sem pai sejam “fábricas de desajustados”, como se ouviu recentemente em campanha eleitoral presidencial.
Cremos que apostar em leituras que exploram experiências paternas “não ditas” (ou malditas) talvez seja um caminho para falarmos mais sobre o tema, sem reproduzirmos uma visão maniqueísta, simplista ou marcadas exclusivamente por afetos. Não se trata de perder a sensibilidade para as memórias que nos mobilizam, mas de reconhecermos que os afetos são também atravessados por ordem políticas e culturais mais amplas. Só assim, podemos transbordar sentidos e desenhar estratégias mais efetivas de transformação.
Em meio a tudo isso, somos otimistas e, como Belquior, vemos “no vento cheiro de nova estação”.
* Benedito Medrado, professor, psicólogo e fundador do Instituto PAPAI
** Jorge Lyra, professor, psicólogo e fundador do Instituto PAPAI
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Saiba mais sobre a ação Cuidar de Quem Cuida:
Sobre o projeto
Pai não ajuda, pai participa
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