Memórias familiares e culturais são como condimentos: acrescentados em pitadas durante o preparo de uma receita, eles parecem desaparecer assim que se misturam aos demais ingredientes. Quando o prato está pronto e é servido, eles aguardam silenciosos a primeira mordida, para que então o sabor se revele, forte ou sutil, mas sempre presente.
Em um país miscigenado como o nosso, pode ser difícil reconhecer quem não é daqui. Convivemos com tantos rostos e sotaques que passar despercebido é fácil, ainda mais na multidão de uma cidade como São Paulo. Muitos querem mesmo se abrasileirar, deixar para trás o país de origem, se refugiar em outros temperos. Mas, às vezes, basta um ingrediente, uma receita, para que os olhos brilhem, o paladar aguce, as lembranças lampejem e toda a ancestralidade venha à tona.
Foi assim que aconteceu com a chilena Paulina Alzamora, que vive no Brasil há quase 30 anos. Depois de dias seguidos preparando empanadas para vender, ela se deu conta de como a sobrevivência de sua família sempre esteve ligada àquele salgado. Isso porque, quando a sua avó materna ficou viúva, a receita foi a maneira de garantir o sustento dos 11 filhos, que vendiam em cestos, pela manhã, as empanadas preparadas durante a madrugada. “Sobretudo quando a gente é imigrante, a comida tem esse poder. De alguma maneira, o preparo e o sabor remetem à infância, ao histórico familiar.”
Paulina é formada em Design e Artes Plásticas, mas sempre usou a cozinha para recriar as tradições de seu país em encontros gastronômicos que promovia para os amigos e os familiares. Foram eles que a incentivaram a investir na culinária, principalmente quando começou a enfrentar dificuldades com o seu trabalho de pintura e bordado. “A comida também é uma manifestação artística, por exemplo, ao escolher os ingredientes, dobrar a massa… Tem as cores, as texturas, os sentidos que são despertados. Um prato muitas vezes é montado quase como uma mini-instalação.”
Na vida de Adel Alloush, a Arte e a Gastronomia também se cruzaram em forma de trabalho. Ele sobrevive como barista, cozinheiro e músico há dois anos, depois de fugir da Síria, onde estudava enfermagem. No começo, além de estranhar o idioma e o ritmo de vida em São Paulo, também não se sentiu muito atraído pela culinária local. “Achávamos a nossa comida melhor, mas depois que experimentamos, gostamos de algumas coisas. Tivemos problemas com a carne, principalmente, pois lá temos outro jeito de matar o animal”, conta.
O preço dos produtos é um dos fatores que dificulta o preparo dos alimentos como Adel estava acostumado. A solução tem sido misturar receitas, por exemplo, o arroz com feijão, que até agora é a sua combinação favorita, com filé de frango temperado à moda síria, ou a mandioca cozida no lugar de outros acompanhamentos de pratos árabes. “A comida árabe está dentro de nós, não dá para perder”, justifica o jovem, que também relata se sentir em casa, quando está cozinhando ou imerso no aroma de suas receitas. “Parece que a minha mãe está na cozinha, que o meu pai saiu para fazer alguma coisa. Fico com a impressão de que vou encontrar gente falando árabe na rua.”
O ator palestino Amjad Milhem também já fez algumas experiências gastronômicas por aqui – a que mais lhe apeteceu foi a tapioca com zátar, uma mistura de especiarias utilizada como tempero na culinária árabe. Ele se refugiou no Brasil em 2014, depois de o seu pai e o seu diretor de teatro terem sido assassinados. Quando chegou, não sabia falar o idioma e passou um bom tempo se alimentando de salgados em padarias e bares. Só depois de ter sido abrigado por uma família brasileira ele teve contato com nossas receitas, mas já acumula boas impressões: “Além do sabor da carne, eu gosto muito do jeito como os brasileiros fazem churrasco, começa meio-dia e acaba meia-noite!”, brinca.
Casado com uma brasileira, ele incorporou à alimentação o nosso famoso PF, o prato feito com arroz, feijão, bife e batata frita. Só estranha ainda o fato de algumas pessoas comerem banana, laranja ou outra fruta com a comida.
No Brasil, Amjad foi para a cozinha pela primeira vez, já que era o único jeito de matar as saudades de casa. Ele não tinha o costume de preparar a sua comida na Palestina e recebeu por telefone as orientações da mãe, que escolheu uma receita não muito simples, mas bastante nutritiva, o Maklube, que leva arroz, berinjela, batata, couve-flor e frango, dispostos em camadas.
Entre as diferenças no momento da alimentação, ele destaca um costume de sua terra em que as mãos são utilizadas em vez dos talheres. “Hoje em dia eu uso mais colher, garfo e faca. Na verdade, eu como do jeito que eu quero, meus amigos já acostumaram e as vezes até participam. Mas sempre tenho saudade”, diz.
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