Não tem coisa melhor – bem, pelo menos não muita coisa melhor – do que se juntar à mesa com pessoas de quem gostamos, e ali compartilhar uma gostosa refeição. Claro que aí não se divide apenas o pão: também se compartilha a companhia, o afeto, as experiências que são contadas e ouvidas e comentadas; compartilha-se enfim a vida, enquanto ela é vivida e apreciada.
Mas “a mesa”, no caso, não precisa ser necessariamente um móvel, uma mesa física que suporta nossas guloseimas e nossos cotovelos. Comer junto é um ato que pode ocorrer em muitas situações, e nem sempre haverá aquele anteparo juntando as pessoas. O que vai juntá-las é a ocasião. No nordeste brasileiro onde nasci – mas também em outros cantos do Brasil, como o interior do Estado de São Paulo, em que vivo — há lugares, ou pelo menos pessoas, que ainda mantêm um hábito antigo, o de comer com a mão, sem talheres, agachado no chão.
Aquelas pessoas agachadas – ou eventualmente sentadas num murinho, ou acomodadas num banquinho ou numa pedra – estão compartilhando seu momento. Às vezes compartilhando até mesmo as travessas, de onde tiram seu feijão, sua farinha, habilmente moldadas em bolinhos que serão levados à boca.
Na minha terra, onde nasci mas nunca vivi, Pernambuco, chamam a este bolinho “capitão” — a comida de comer “de mão”. E, curioso: o bolinho -– de feijão com farinha mas também acrescido de arroz, de jerimum, de pimenta, de toucinho, de carne-seca, doque fosse – não deixa de lembrar o tão sofisticado sushi…
Mas que entre nós é um hábito milenar que nossos índios sempre cultivaram – comer diretamente com as mãos, e no chão, mas em conjunto. Ali não tem mesa, mas estão todos dividindo seu pão e sua prosa, como se mesa houvesse.
No Oriente Médio há também o hábito de dispensar a mesa para comer. Como se fazia no passado, muitos ainda hoje preferem comer no chão – ainda que repousados em ricas almofadas. Ficam em círculo, e no meio deles, há apenas uma toalha diretamente no chão, obviamente recoberta de inúmeros (sim, costumam ser muitos!) pratinhos e cumbucas com deliciosas iguarias, das quais todos se servem animadamente. Em poucos lugares se come tão fartamente e alegremente como no Líbano, e ali é mais tradicional fazê-lo sobre almofadas no chão do que sobre cadeiras à mesa.
Também nas casas japonesas, e em outros países do Oriente asiático, a mesa é um pouco diferente do nosso padrão ocidental – ela é baixinha, seu tampo fica quase no nível do solo, e ao seu redor as pessoas também dispensam cadeiras.
Sem falar ainda de outras situações em que não é exatamente a mesa o protagonista. Já repararam como pode ser informal, delicioso e divertido comer no balcão dos nossos tradicionais botecos? Ou nos mágicos balcões de sushibares? Ou da padaria? Em todos esses casos, mesa pra quê?
Nem sempre, portanto, está ali aquele móvel; e no entanto, em todas essas circunstâncias, estão todos os comensais simbolicamente “à mesa”, todos compartilhando um mesmo momento de restauração da vida enquanto compartilham também a sociabilidade.
Mas vamos considerar que a mesa, na nossa sociedade ocidental, virou o padrão como local de refeição. E mais: ganhou um papel especial, um certo status superior, um espaço nobre e central num cômodo onde ela reina – a sala de jantar.
É verdade que, no Ocidente, há muito existiam suntuosas salas de jantar, com suas mesas gigantescas, seus aparadores, suas cadeiras de altos espaldares – mas até poucos séculos atrás, esse era um padrão encontrado unicamente nos palácios e castelos. Até o século 18, na Europa, as casas burguesas, onde viviam os plebeus, na cidade – assim como no Brasil, nas casas comuns onde todos viviam,seja na cidade ou no campo – não tinham a “sala de jantar” cerimonial. O hábito sempre foi comer na cozinha, a poucos passos do fogo: comia-se no espaço doméstico (e não no “de visitas”), com a família praticamente instalada ao pé do fogão.
É portanto recente, na história –coisa da época da Revolução Francesa para cá –, o trânsito da mesa de comer para um espaço especial e nobre – acompanhada, logicamente, de toda uma cerimônia representada pela baixela, pelas pratarias, pelas toalhas e guardanapos, pelas taças especiais. E com isso, a própria refeição ganhou um outro verniz.
Mas nada que mudasse o essencial: comer junto continuou sendo dividir mais do que a comida — seja em família, seja em situação social mais formal.
E ali reina a mesa.
Um objeto que no passado ficava encostado às paredes, mais aparador do que aglutinador de pessoas, e que já foi absolutamente básico e rudimentar, até que virasse objeto também ornamental, ganhasse contornos decorativos, e finalmente, se transformasse em ícone do design moderno. Quem (como eu) estudou arquitetura e design tem na retina peças de grande impacto produzidas no século vinte, quando não apenas famosos designers como também todos os arquitetos importantes deixaram sua marca nesses móveis.
É o caso das mesas (vale a pena buscar na internet para conhecê-las) Saarinen (do finlandês Eero Saarinen), Eiffel (do americano Charles Eames), Noguchi (do nipo-americano Isamu Noguchi), Husser (do americano Frank Lloyd Wright — que além disso, desenhava mesas especiais para cada ambiente que projetava), Berlino (do escocês Charles Mackintosh), bem como a LC6 do franco-suíço Le Corbusier, a B10 do húngaro Marcel Breuer…
A lista é infindável, mas entre esses verdadeiros artistas ainda vale a pena incluir a italiana (que foi radicada no Brasil) Lina Bo Bardi, com as grandes mesas coletivas que projetou para o restaurante do MASP e do Sesc Pompeia. E lembrar que até mesmo o arquiteto e designer brasileiro Sergio Bernardes, mais conhecido por suas cadeiras, chegou a desenhar mesas exclusivas como parte do projeto de casas de sua autoria.
Ainda que ela nos venha à mente principalmente associada às refeições, temos também que lembrar que a refeição não é o único momento onde a mesa nos parece indispensável. Este móvel também tem sido, e cada vez mais, o acessório habitual nos momentos de trabalho, que ocupam tantas horas da nossa vida.
Mas havemos de convir: considerando que ela está presente nas reuniões de negócios, agrupando pessoas em momentos tensos de trabalho; assim como faz parte do nosso cotidiano, apoiando nossos computadores nas longas jornadas de trabalho solitário (ainda que em escritórios ou grandes repartições) que compõem boa parte das profissões — existirá momento mais nobre para a mesa do que quando ela apoia nossos pratos, e organiza à nossa volta as pessoas junto das quais vamos comer?
Mas mesmo com tudo isso, fica claro que a mesa não é fisicamente indispensável para a refeição – é aliás a coisa menos importante: o que glorifica o comer, antes de tudo, é a comida (não somente pela fartura, mas igualmente pela sua qualidade), e logicamente, também a companhia (assim como pessoas queridas, ou no mínimo interessantes, podem tornar
uma refeição melhor, pessoas erradas podem torná-la uma tragédia).
Sentado no chão, de cócoras, em banquetas no balcão, cada momento desses pode se tornar uma refeição inesquecível — com mesa ou não. Pois simbolicamente a mesa, o espaço de convívio com a comida, estará presente.
Mais: aqueles que comem diretamente no chão — mesmo os que o forram com toalhas de seda ricamente bordadas — no fundo estão fazendo do chão a própria mesa, sendo o solo nada mais do que um pedaço de terra do planeta. É quando, de forma tão básica, o planeta se torna diretamente a mesa — mais simbolismo, impossível.
Não precisa de mesa, é verdade. Mas a verdade mesmo é que eu gosto de uma mesa de verdade. Confortável, repleta de gente e de comida, com talheres, guardanapos, jarras e tudo a que temos direito nos nossos (ou meus, pelo menos) hábitos atuais. Uma mesa com pratos apetitosos, papos amenos, boa bebida, e muitos afetos. Mas na falta dela, a mesa física, estando o resto presente, que falta ela fará?
Texto: Josimar Melo (Crítico gastronômico da Folha de S.Paulo, sócio do site Basilico e apresentador de O Guia, no canal NatGeo. É autor do Guia Josimar, de restaurantes de São Paulo; professor de História da Gastronomia; e presidente do júri brasileiro do prêmio World’s 50 Best Restaurants)
Ilustração: Andrea Kulpas
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