Por Tatiana Amaral*
“Mortes indígenas no Brasil não são apenas números, são corpos com memórias, histórias e vozes coletivas. A cada Indígena que se vai é uma voz que deixa de entoar o canto. É uma mão que deixa de bater o maracá.
Do luto à luta. Não é somente número, cada corpo Indígena tem uma encantaria ancestral. A cada Indígena morto, morre parte da nossa história coletiva. Enterrar um parente pelo genocídio em massa é enterrar mais um corpo que luta por direito. A cada Indígena derrubado é uma árvore que é ameaçada”.
Célia Xabriabá, professora, doutoranda em Antropologia e liderança indígena.
No final de março de 2020, foi registrado, oficialmente, o primeiro caso de Covid-19 entre povos indígenas no Brasil. A primeira indígena a ser diagnosticada com a doença foi uma agente de saúde de vinte anos do povo Kokama, na região do Alto Solimões (AM). Desde então, centenas de indígenas foram contaminados pelo novo coronavírus, em todas as regiões do país. A imprecisão dos dados oficiais da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), que apenas contabiliza os casos de indígenas em Terras Indígenas regularizadas, mobilizou organizações indígenas e indigenistas a realizarem seus próprios levantamentos. Por meio de publicações em suas redes sociais, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) evidencia regularmente a expressiva diferença entre os dados da Sesai e aqueles coletados pelo Comitê Nacional pela Vida e Memória Indígena, criado no início de maio com o intuito de acompanhar dos casos de Covid-19 junto a organizações de base e instituições parceiras do movimento indígena.
Virtualmente, indígenas e indigenistas do Brasil inteiro debatem e revelam os desafios e situações enfrentados no contexto da pandemia. Em uma live sobre povos indígenas e Covid-19, Ângela Kaxuyana, representante da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB), expõe sua perspectiva crítica perante o cenário atual:
“Diante dessa situação de ameaça do coronavírus, a gente volta de novo com situações recentes dessas doenças de fora vindo para dentro dos nossos territórios como uma ameaça. Uma ameaça real, inclusive, de extinção de povos, de diminuição de número [das populações indígenas]. (…) Eu tenho cada vez questionado alguns termos, de quando fala que os povos indígenas são vulneráveis para essas doenças… Eu fico muito questionando comigo que nós não somos vulneráveis. (…) Nós somos colocados em situação de vulnerabilidade, não é que nós somos vulneráveis. É um entendimento totalmente diferente. E nós ficamos em situação de vulnerabilidade quando as doenças são trazidas de fora para dentro, porque nós sabemos lidar, nós temos a cura, nós temos como tratar as doenças que são comuns entre nós.”
Além de serem altamente vulneráveis às infecções respiratórias agudas, conforme evidenciam estudos científicos, aos povos indígenas são impostas condições que lhes tornam especialmente vulnerabilizados ao novo coronavírus, tais como as limitações ao acesso à saúde e ao saneamento básico; e as invasões ilegais de seus territórios por garimpeiros, madeireiros e grileiros. A respeito das políticas públicas de saúde, Ângela Kaxuyana aponta um panorama do estado do Amazonas, que tem o maior número de casos confirmados.
“Aí, você começa a se perguntar: se em situação de comunidades que estão relativamente próximas aos grandes centros, como Manaus, não está tendo o atendimento devido, não está tendo a atenção devida, não está sendo monitorada a situação real, imagina se essa pandemia chega nos territórios indígenas onde não tem hospital, onde muitas aldeias não têm sequer um posto de saúde. Eu estou falando de uma situação da realidade da minha Terra Indígena: são mais de 30 aldeias e nenhuma tem posto de saúde. Funciona aquele postinho lá que o parente construiu ou que o postinho está funcionando lá dentro da igreja. (…) E o pior ainda, dá mais desespero ainda: e se chegar nos territórios onde há presença de povos isolados e de recente contato?”
Dada a alta transmissibilidade do vírus, após o primeiro contágio, pode haver um crescimento acelerado da doença entre os povos indígenas. Esta tendência é evidente em São Gabriel da Cachoeira (AM), cidade de 45 mil habitantes que tem o maior percentual de população indígena no Brasil – cerca de 90%. Localizada na região conhecida como Cabeça do Cachorro, na fronteira com Colômbia e Venezuela, a cidade reconheceu como línguas oficiais o baniwa e o nheengatu (língua geral amazônica). Apesar dos esforços de isolamento social, com a interrupção de transportes aéreos e fluviais, a doença chegou no Alto Rio Negro, região em que habitam 23 povos indígenas. Em apenas 19 dias, foram notificados 265 casos e ocorreram 12 óbitos. Apesar de não contar com uma Unidade de Tratamento Intensivo (UTI), há um hospital nessa cidade de fronteira, gerido pelo exército brasileiro, no qual foram internados 14 indígenas.
São Gabriel da Cachoeira era local de residência de Feliciano Pimentel Lana, um dos mais conhecidos artistas plásticos indígenas no Brasil. Nascido em 1937 na comunidade de São João, localizada às margens do rio Tiquié (afluente do rio Uaupés), faleceu no dia 12 de maio. Aos 83 anos, decidiu sair da cidade, rumo ao encontro de seus filhos no interior, temendo o contágio pelo vírus. De acordo com o Instituto Socioambiental, ele apresentou sintomas de covid-19 e faleceu na comunidade São Francisco, conforme informado via radiofonia.
Seu nome tradicional indígena era Sibó, um dos nomes passados de geração em geração para os homens de sua etnia, Desana. Feliciano nasceu e cresceu no contexto da presença dos missionários católicos na região do Alto Rio Negro. Assim como tantas outras crianças, Feliciano foi afastado de sua comunidade de origem, aos onze anos, a fim de frequentar um internato salesiano em Pari-Cachoeira (AM), no qual foi proibido de falar sua própria língua e de ter contato com aspectos mais visíveis de sua cultura.
Embora a presença missionária tenha impactado diversos aspectos das culturas indígenas rionegrinas – especialmente em relação às suas dimensões materiais (com a prática de confisco de adornos e objetos rituais, ditos pelos padres “coisas do diabo”) -, os seus conhecimentos imateriais não deixaram de ser circulados entre as gerações. A arte de Feliciano Pimentel Lana revela com extrema beleza as histórias aprendidas com os mais velhos, com destaque para aquelas relacionadas à origem do mundo e da humanidade.
Segundo contam os conhecedores, os primeiros ancestrais chegaram à região do Alto Rio Negro depois de uma longa viagem a bordo de uma Cobra-Canoa pelos rios Amazonas, Negro e Uaupés. Ao longo desse percurso, foram parando em vários lugares importantes, onde obtiveram os conhecimentos necessários para a vida de seus descendentes nessa terra. Tais lugares sagrados e as narrativas míticas dos povos indígenas da família tukano do Alto Rio Negro são o tema do documentário Pelas Águas do Rio de Leite (Dir. Aline Scolfaro, Brasil, 2018), lançado em São Paulo no CineSesc, cujos minutos iniciais exibem uma animação composta a partir de desenhos de Feliciano Lana.
Dessa forma, a obra do artista desana percorreu o mundo em diversos suportes e a qualidade do seu trabalho foi reconhecida internacionalmente – recentemente, ele estava colaborando com Museu Britânico. Além de ter participado de exposições no Brasil e em países da Europa, os seus desenhos e de seu primo, Luiz Lana, ilustraram o livro Antes o mundo não existia. Mitologia dos antigos Desana-Kéhíripõrã, publicado primeiramente em 1980. Em 2009, Feliciano publicou pela Editora da Universidade Federal do Amazonas (Edua) o livro A origem da noite e Como as mulheres roubaram as flautas sagradas, com texto e desenhos de sua autoria.
Por meio das tecnologias e instrumentos aprendidos com os não indígenas, Feliciano tornou visíveis para o mundo todo os saberes e fazeres de seus antepassados, atualizados ao longo das gerações. Embora o seu contato com o “mundo dos brancos”, conforme aponta a crônica de José Ribamar Bessa Freire, não tenha sido isento de conflitos e tensões, a sua trajetória foi marcada pela importância de abrir espaço para que os indígenas sejam reconhecidos enquanto artistas – e, nesse sentido, para o reconhecimento do estatuto artístico e estético das produções indígenas. É bastante simbólico que, ao inaugurar um novo espaço cultural, no ano de 2016, o Museu da Amazônia (Musa) tenha escolhido obras de Feliciano Lana para a sua primeira exposição. Assim, sua vida deixa o importante legado de valorizar o protagonismo indígena no campo das artes.
Conhecer um pouco da vida do artista desana permite que a fala supracitada de Célia Xakriabá ganhe corpo: cada óbito implica na perda de conhecimentos inestimáveis. Por reconhecerem esse fato, as 305 etnias indígenas no Brasil, cada uma à sua maneira, vêm estabelecendo estratégias próprias para o contingenciamento da doença – por exemplo, as famílias de uma grande aldeia se separam e formam pequenos acampamentos no mato, evitando aglomerações, e comunidades introduzem placas solicitando que pessoas de fora não entrem em seus territórios. Tendo enfrentado diversas epidemias ao longo de suas histórias de contato (algumas mais antigas e outras muito recentes), esses povos nos ensinam que, para salvar vidas, não se deve medir esforços – e que estes só têm eficácia quando feitos coletivamente.
* Tatiana Amaral é antropóloga e assistente técnica da Gerência de Estudos e Programas Sociais do Sesc São Paulo.
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O debate ‘Saúde indígena no contexto da pandemia’ acontece no youtube.com/sescsp, a partir das 16h, e traz Marivelton Baré (presidente das organizações indígenas do Rio Negro) e Douglas Rodrigues (médico sanitarista do projeto Xingu, da Unifesp). Participe!
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