Grupo São Gens de Teatro reúne narrativas de corpos dissidentes das periferias alagadas da capital pernambucana
por Rafael Ventuna
Toda biografia negra será escrita com sangue. É com este conhecimento de causalidade que o Grupo São Gens de Teatro magistralmente protege cinco narrativas em embalagem plástica. Para que o contato com as águas não seja mais um responsável pelo apagamento de histórias de vidas marginalizadas.
Estreada no YouTube em 2021 devido à pandemia da COVID-19, a peça já foi apresentada em Recife, Salvador, Vitória de Santo Antão, Limoeiro, Rio de Janeiro, e, na capital paulista, teve duas sessões em março.
A temporada da peça teatral “Narrativas encontradas numa garrafa pet na beira da maré” no Sesc Avenida Paulista, de 17 de junho a 17 de julho, se configura como um ato simbólico e político importante. Principalmente, pelo momento atual vivido pelas populações periféricas na capital pernambucana.
Tive a oportunidade de estar na apresentação realizada no Teatro Hermilo Borba Filho dentro da programação do festival Trema! em abril. Então, a minha vivência de corpo periférico e dissidente que produz escrita crítica também entrou em pauta.
Engarrafar
Para a sabedoria dos ribeirinhos, boiar é sobreviver. É sobre o viver. Garrafas boiam. E, na planície litorânea, onde o Rio Capibaribe encontra o Oceano Atlântico, a população preta e pobre foi historicamente e literalmente marginalizada. A cidade do Recife empurra sua periferia para as margens dos rios. Uma “organização” urbana violenta e mortal.
No final do mês de maio, as fortes chuvas no Pernambuco trouxeram à tona mais uma vez esta realidade, que tragicamente submergiu mais de 120 vidas, superando a Cheia de 1975 e talvez ultrapasse a maior catástrofe do século 20 que foi a Cheia de 1966. Mais de 120 mil pessoas estão desalojadas ou desabrigadas no Estado.
Como o perigo transborda de várias maneiras, no mesmo mês de maio, um grande incêndio atingiu as palafitas da Bacia do Pina. Exatamente o local de origem de Anderson Leite, que assina a dramaturgia e a encenação da peça. É de lá também que vêm as conchinhas que desenham o caminho que o público vai percorrer até que se abra a imaginada garrafa PET, na qual se pode encontrar as cinco narrativas.
Desengarrafar
O maior mérito da montagem está no texto. Cada palavra, cada nome e cada frase precisam ser atentamente recebidos, pois fazem encaixes simétricos com o contexto. Há camadas complexas na dramaturgia, que moldam personagens densas e absolutamente derivadas da geografia e da urbanidade recifense. A coragem no uso de gírias e sotaque periféricos é admirável. Se por um lado essa linguagem verbal pode causar ruídos no entendimento de determinadas plateias, está aí a mais interessante fricção que o trabalho provoca.
Formado por artistas pretos, o Grupo São Gens de Teatro se autointitula marginal e possui uma pequena ficha técnica, que revela muitos aspectos. Atuante desde 2009, já contabiliza mais de 15 peças, ações performáticas e intervenções. Dependente de fontes esparsas de financiamento, os integrantes alternam-se em funções de gestão, criação e cenotécnica.
É necessário destacar que o figurino de André Lourenço, a direção musical de Arnaldo Monte e o cenário e a iluminação criadas coletivamente reconstroem com grande riqueza de detalhes o ambiente em que habitam as personagens. Impossível não se sentir transitando à noite, sob a luz de postes, por alguma rua nos Coelhos, na Brasília Teimosa ou cruzando a Ponte da Salvação para chegar à Comunidade do Detran.
A estrutura da encenação é bem simples e eficiente. Um prólogo cria a imagem das personagens chegando numa embarcação até atracar em cena. A peça segue com quatro monólogos, uma cena coletiva e o monólogo final. Muitas referências à cidade do Recife vão surgindo. Evidentemente, o tecnobrega não poderia ficar de fora. Uma das cenas mais marcantes é o jogral que faz uma profusão de nomes de artistas e intelectuais negros. É quase um teste. Porque a identificação das personalidades contribui para o público se localizar no processo de descolonização dos repertórios.
Anderson Leite abre a sequência de falas cumprindo a importante função de contextualizar a plateia. Cristiano Primo, Fagner Fênix e HBlynda Morais usam integralmente seus corpos como suporte para suas narrativas. Recomendo especial atenção à escada como dispositivo dramatúrgico e ao monólogo de André Lourenço que, entre pneus, trata da crueldade vivida por um garoto que nasceu de “dois alguém”. E faz necessária citação ao caso Miguel da Silva, vítima da negligência da patroa de sua mãe.
O título da peça ainda abarca a reflexão sobre as questões ecológicas. Afinal, a presença de plástico PET (sigla para polietileno tereftalato) na “maré” e o desequilíbrio ambiental planetário agravam as condições de vulnerabilidade das populações ribeirinhas, as mais afetadas pelas enchentes e pela falta de acesso à moradia digna no Recife.
Comparecer a uma sessão da peça “Narrativas encontradas numa garrafa pet na beira da maré” é a garantia de acessar uma das pesquisas cênicas mais contundentes do teatro contemporâneo brasileiro. Porque se constitui a partir de suas próprias bases, enquanto dialoga com recursos cênicos da herança teatral eurocêntrica. Não é teatro de artistas pretos de pensamentos gentrificados.
Além disso, ir por única vez à apresentação parece ser insuficiente. Não se esgotam as leituras. Pois, novos mergulhos mais profundos são possíveis. E, ao se retornar à superfície, a própria consciência desengarrafa outras narrativas.
De 17 de junho a 17 de julho de 2022. Sextas e sábados, às 21h. Domingos, às 18h.
Local: Arte II (13º andar)
Ingressos: R$ 30,00 (inteira); R$ 15,00 (meia: estudante, servidor de escola pública, + 60 anos, aposentados e pessoas com deficiência); R$ 9,00 (credencial plena: trabalhador do comércio de bens, serviços e turismo matriculado no Sesc e dependentes.
Limite de compra de até dois ingressos por pessoa.
Ingressos aqui. Venda presencial nas unidades a partir de quarta, 8/6, às 17h.
Rafael Ventuna é jornalista cultural e crítico de arte.
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