Quando a arte fala de Aids

22/11/2019

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Performance Contagiar – De Kako Arancibia – Foto: Divulgação 

*Por Leandro Noronha da Fonseca

Entre transeuntes de um espaço público qualquer, Kako se senta diante de uma cadeira vazia. Ao seu lado, uma placa onde se lê “Vamos conversar sobre HIV e Aids”. Quando a cadeira é ocupada, o silêncio que há décadas cerca o assunto é substituído pelo diálogo. Chamada Contagiar, a performance do artista mineiro Kako Arancibia foi apresentada em algumas cidades brasileiras com o propósito de levar a um ambiente aberto a reflexão de um assunto ainda guardado nas gavetas do tabu. 

Kako é um dos artistas que abordam em seus trabalhos o HIV/Aids. Desde o surgimento da epidemia no início de 1980 até hoje, a temática está presente na literatura, no teatro, no cinema e em outras linguagens. O tema passou por inúmeras transformações no decorrer do tempo, mas continua sendo objeto de pesquisa e criação artística.

Internacionalmente, artistas como Keith Haring (1958-1990), David Wojnarowicz (1954-1992) e Félix González-Torres (1957-1996) se debruçaram sobre o tema do HIV/Aids, fazendo do grafite, da fotografia e da instalação artística ferramentas de denúncia e de reflexão. As respostas culturais à epidemia estão presentes também em trabalhos do grupo ativista ACT UP (Aids Coalition to Unleash Power), da fotógrafa Nan Goldin e dos escritores Hervé Guibert (1955-1991), Michael Cunningham e Sarah Schulman. No Brasil, o tema adentrou a produção de artistas como Leonilson (1957-1993), Rafael França (1957-1991) e dos escritores Caio Fernando Abreu (1948 -1996) e Herbert Daniel (1946-1992).

Trecho de “Rafael França: Obra como testamento”

Todos estes artistas, imersos em realidades sociais e culturais distintas, trouxeram o tema a partir da realidade de um período muito diferente de hoje. Na década de 1980, o preconceito e o desconhecimento da doença tornaram parte da comunidade médica e da imprensa grandes disseminadores de pânico e de estigma. A arte do período serviu de contra-narrativa a todos os discursos que marginalizavam as pessoas vivendo com HIV/Aids e as populações mais afetadas pela epidemia. 

De lá para cá, a realidade da doença se transformou a partir dos avanços médicos e científicos. O surgimento de medicamentos cada vez mais potentes proporcionaram menos mortes e melhor qualidade de vida às pessoas vivendo com HIV/Aids. Tal transformação foi e continua sendo retratada por artistas que, por meio das mais variadas expressões e estéticas, buscam tematizar a questão em constante diálogo com a contemporaneidade. 

Olhares positivos sobre a arte

Atualmente, o país é palco do surgimento de grupos e artistas que buscam dialogar com a realidade presente do HIV/Aids. Os coletivos Contágio, Amem e Loka de Efavirenz, a artista plástica Adriana Bertini e os poetas Ramon Nunes Mello e Marina Vergueiro são apenas alguns exemplos. 

A diversidade estética também se faz presente entre estes artistas. Natural de Belo Horizonte/MG, o ator e performer Kako Arancibia ocupa os espaços públicos com a performance Contagiar, inspirada no trabalho da artista Eleonora Fabião. Em 2019, estreia a cena Boca a Boca, dando continuidade ao assunto nos palcos.

O corpo também é plataforma de criação para a artista visual e performer paulistana Micaela Cyrino. Em 2015, cria e apresenta a performance Cura durante uma residência artística em Quito, no Equador. A partir de então trabalha com as técnicas de colagem e lambe-lambe para falar sobre HIV/Aids.

Já a voz e a palavra são utilizadas pela cantora e compositora Maria Sil. Nascida em São Vicente, litoral de São Paulo, lança em 2017 o EP Húmus, cujo single Olhos Amarelos recebe elogios de Elza Soares. Atualmente, fecha os últimos detalhes para o lançamento do novo EP chamado A Carne, A Língua, O Vírus

 A Aids fora dos consultórios médicos

De diferentes regiões e realidades sociais, Kako Arancibia, Micaela Cyrino e Maria Sil possuem o mesmo propósito no fazer artístico: dar visibilidade a um debate que é silenciado ou monopolizado pelo discurso médico.

“No senso comum, a raiz do HIV está relacionada à doença. Sempre haverá a sensação de que o campo principal deste debate é pelas áreas da saúde e da medicina”, diz Arancibia. Após pesquisar e ter um olhar de criação artística para o HIV, o artista passa a se relacionar com o assunto além das paredes do consultório médico. “O HIV deixa de ser na minha vida apenas o contato com o infectologista e tomar os remédios. Vi mudanças importantes acontecendo na minha experiência de pessoa HIV positiva.” 

Micaela Cyrino. Foto: Richener Allan.

A temática ganha espaço no Carnaval e no dia 1º de Dezembro, Dia Mundial de Luta contra a Aids, por meio de campanhas de prevenção que, para Micaela Cyrino, estão distantes da sociedade. “A arte vem como vem pra qualquer assunto, de uma maneira a aproximar as pessoas”, afirma a artista. “Tenho visto trabalhos sobre HIV muito diversos, que aproximam o público do assunto muito mais do que as propagandas que focam mais na prevenção do que na conscientização.”

Para Kako, o viés biomédico, focado na medicalização, não consegue abarcar as subjetividades, os desejos e a autonomia das pessoas vivendo com HIV. “A arte é capaz de acessar as pessoas, sejam elas positivas ou não, médicos ou não, de acessar as pessoas em lugares onde o discurso médico não alcança. O HIV e a Aids não atingem as pessoas só no âmbito físico, mas muito no âmbito subjetivo e emocional. A arte é uma ferramenta essencial.” 

Arte pós-coquetel

Se a dor e o medo protagonizavam as produções artísticas dos anos de 1980 e 1990, período em que o diagnóstico positivo para o HIV era quase sempre uma sentença de morte, o surgimento da terapia antirretroviral reduziu a mortalidade e possibilitou que pessoas vivendo com o vírus dessem continuidade aos seus projetos de vida. A partir de então, a arte passa a ter outros olhares sobre a questão.

“Muito mais do que falar sobre morte, é a possibilidade de estar vivo, de se relacionar, de construir planos”, comenta Micaela. “Atualmente, a arte vem nesse sentido e também num viés parecido com o dos anos 80, que é reivindicando direitos, sinalizando algumas questões sociais. O sentido político da arte continua, mas existe mais poesia no trabalho dos artistas atuais que falam sobre HIV, e menos morte, menos dor.”

Para Maria Sil, a arte produzida no início da epidemia não refletia a diversidade de realidades em torno do HIV e da Aids. “A maioria dessa produção parte ou é sobre homens gays brancos.” Entretanto, a cantora reconhece que a produção contemporânea abarca outras experiências sociais. “É interessante o movimento de acrescentar novas narrativas, outros olhares. O olhar das travestis, das mulheres, das mulheres negras, dos gays negros, outros olhares pulverizando o que seria essa epidemia.”
 

Maria Sil. Foto: Alberto Cerri.

Além da música, Maria experimenta o campo da performance para falar sobre suas vivências. Em 2019, cria a ação O Velório de Maria Silvino, apresentada em Santos e São Paulo. Deitada em um caixão, a cantora denuncia as violências sofridas por seu corpo trans e soropositivo, trazendo para o debate um tema pouco recorrente na arte positiva atual: a morte.

“Eu acho perigoso retirar a morte de pauta na arte”, contrapõe Maria Sil. “O assunto não é uma página virada, precisamos falar de mortalidade e das 11 mil pessoas que morreram em decorrência da Aids no ano passado no Brasil. Tem que ter responsabilidade com os mortos da Aids. Não sei se todos têm.”

Kako Arancibia. Foto: Alberto Cerri.

“Temos que falar, sim, das mortes que acontecem, da necropolítica que existe. Precisamos olhar para essa parte, mas também para a parte da vida. As duas coisas ao mesmo tempo”, complementa Arancibia. “O senso comum esquece, quer esquecer ou não quer nem acreditar que exista vida nos corpos com HIV. A gente vive, goza, ama, e estamos prontos pra jorrar essa saúde para todos os lados.”

A arte que tematiza o HIV/Aids na atualidade expõe o racismo, a LGBTfobia, o machismo e o capitalismo como elementos que contribuem para o aprofundamento da epidemia e das desigualdades sociais. A complexidade do tema se adensa quando surgem outras narrativas que seriam impossíveis de existir em um período de precariedades: a emergência da vida, a relação – às vezes tensa – com o tratamento antirretroviral, a afetividade e a sexualidade pós-HIV, o dilema entre divulgar ou não o status sorológico etc.

“Se na década de 80 muitas das produções repetiam a frase ‘Estou assistindo meus amigos morrerem, precisamos fazer algum coisa’, acho que hoje, o que eu busco enquanto artista é somar com a frase que diz ‘Vocês precisam assistir a gente viver, porque estamos vivendo também, e vocês estão fazendo parte disso e não fazem ideia’”, finaliza Kako. 

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Entre os dias 1 e 8 de dezembro o Sesc São Paulo realiza o Contato, uma série de ações que visam a promoção da saúde sexual e a prevenção das Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs), entre elas o HIV/Aids, por meio de bate-papos, oficinas, exibições, espetáculos, performances, entre outras atividades nas unidades da capital, interior e litoral. Para conferir a programação completa acesse sescsp.org.br/contato

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*Leandro Noronha da Fonseca é jornalista, escritor e especialista em “Mídia, Informação e Cultura” pelo Centro de Estudos Latino-americanos sobre Cultura e Comunicação (CELACC) da ECA-USP, autor da pesquisa “HIV/Aids e narrativas pós-coquetel na poesia contemporânea brasileira”. É artista-criador do Coletivo Contágio, onde desenvolve o projeto cultural “Ciclo de Contágio: Pesquisa de Levante do HIV/Aids”, contemplado pelo Edital VAI 2019 da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo.

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