Foto: Silvia Machado
* Por Diego Félix Miguel
Meu papel é o de mostrar às pessoas que elas são muito mais livres do que pensam ser; que elas têm por verdadeiras, por evidentes, alguns temas que foram fabricados num momento particular da história, e que essa suposta evidência possa ser criticada e destruída. FOUCAULT (2007)
Quando iniciei meus estudos sobre envelhecimento e velhice, aprendi que se trata respectivamente, de um processo e uma etapa da vida. O envelhecimento não é apenas um processo biológico, pois é permeado por questões biopsicossociais que determinam e condicionam as formas de existir, com potencialidades e demandas específicas de cada pessoa, tornando-o singular em cada existência. Já a velhice é uma construção sociocultural que surgiu para atender uma necessidade social, a fim de categorizar um determinado grupo que atende características ou condições específicas, com normatizações sociais que definem e estabelecem o modo de ser.
Nos últimos anos o envelhecimento e velhice têm ocupado um espaço cada vez maior na mídia, nas questões políticas e em muitos outros contextos, o que tem proporcionado uma visibilidade importante e a sensibilização para essas questões, que são inerentes à todas as pessoas. Porém, acredito que a visibilidade de um perfil ou realidade estabelecidos por ideias hegemônicas não basta, é preciso extrapolar as tantas possibilidades do existir, pois é relevante priorizar um discurso que reforce a diversidade que compõem esses aspectos, de modo a romper com os estereótipos e mitos que massificam pessoas e reforçam as condições de desigualdade social, limitando o exercício da autonomia e a independência – bases fundamentais para o envelhecimento ativo, e que estão muito além dos padrões e normas estabelecidos numa estrutura social rígida composta por preconceitos “naturalizados”, ou seja, que são “aceitos” socialmente.
Por isso citei Foucault, porque me inspira a refletir sobre a responsabilidade e engajamento na desmistificação do envelhecimento e velhice, propondo novos espaços para percepções e reflexões a partir da fala das pessoas idosas, de modo a enfatizar a pluralidade desses processos e favorecer a elaboração dos questionamentos necessários, a fim de romper com o preconceito estrutural e proporcionar a mudança dessa realidade, por mais lenta e difícil que seja.
Acredito que a arte e o fazer artístico seja uma estratégia bem interessante para favorecer a leitura dos contextos sociais que estamos inseridos.
Por que nos preocupamos com arte? Para cruzar fronteiras, vencer limitações, preencher o nosso vazio – para nos realizar.
GROTOWSKI (1992)
Partindo da reflexão de Grotowski, uma das principais referências do teatro do século XX, considero que a arte nos permite cruzar fronteiras e vencer limitações, ou seja, o potencial para seguirmos muito além do que consideramos como limites, a fim de descobrirmos e re-descobrirmos as novas possibilidades de atuação no mundo, preenchendo as lacunas existentes, sejam elas socioculturais ou subjetivas, criando oportunidades de reflexão sobre o contexto social em que estamos inseridos e despontar novas perspectivas de vida.
Apesar de ter aprofundado meus estudos sobre a prática teatral, acredito que essa experiência é possível em todas as linguagens artísticas, quando comprometidas por um processo que estimule o autoconhecimento, as possibilidades de aprofundar meios de expressão, novas vivências e experiências de ser e estar, que compreendam momentos de compartilhamento em grupo e contextualizações que provoquem a crítica, o aprofundamento e a organização das ideias.
Em minha pesquisa sobre processos artísticos voltados à autonomia da pessoa idosa, percebi que há quatro aspectos a serem considerados na metodologia utilizada, de modo que contribuam com a participação e a dedicação dos idosos do grupo. Os aspectos são a identificação, a curiosidade, a valorização e a ressignificação.
Na condução de cursos de artes, percebi que conhecer as pessoas idosas antes da prática artística é fundamental para contribuir na escolha das atividades, para que todas as pessoas se identifiquem com a proposta, aspecto que favorece a dedicação dos participantes durante as vivências. Considero relevante para esse processo, que as atividades despertem a curiosidade da pessoa idosa, pois é através dela que se sentem motivados a experimentar o novo e a superarem suas próprias expectativas. A valorização do seu repertório pessoal e das atividades que exerceu ao longo da vida também é muito importante para esse processo, e motivador para superar desafios, permitindo que extrapolem suas experiências passadas e permitam-se ao novo, e a partir dessa experimentação, a ressignificação que é permeada pela contextualização, ou seja, momento de refletir e compartilhar sobre suas percepções subjetivas e coletivas, de modo que dessa troca, surjam novas possibilidades de caminhos, concepções e escolhas, perspectivas fundamentais para o exercício da autonomia.
Mais recentemente, tenho refletido sobre um quinto aspecto: o afeto. Para Ferreira (2009), numa leitura sobre o afeto pela ótica do filósofo holandês Spinoza, somos diferentes a cada encontro, a cada instante. E cada, modificação que experimentamos é absolutamente inédita e singular. E como cada experiência é única, podemos considerar cada pensamento e cada modificação do nosso corpo como um traço singular que nos caracteriza durante o nosso percurso existencial.
Nesse sentido, o afeto são as transformações internas que acontecem quando estamos em contato com o mundo, portanto, somos afetados (transformados) a cada segundo, agregando a partir da experiência que compartilhamos com as pessoas, as coisas e o espaço novas oportunidades de percepções e experimentações de ser e estar.
Considero que, por meio da prática artística com uma metodologia que favoreça a participação das pessoas idosas em oportunidades que envolvem o processo de criação, permeadas pelo autoconhecimento, a experimentação e a reflexão, ampliamos a possibilidade de ressignificação, de se perceber e vivenciar novas perspectivas da velhice, emancipada de estereótipos e mitos que limitam a autonomia e independência das pessoas idosas.
* Diego Félix Miguel é especialista em Gerontologia pela SBGG e gerente do CONVITA – Centro de Convivência do Patronato Assistencial Imigrantes Italianos.
Referências:
FERREIRA, Amauri. Introdução à Filosofia de Spinoza. 1ª ed. São Paulo: Quebra Nozes, 2009.
FOUCAULT, M. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
GROTOWSKI, Jerzy. Em busca de um teatro pobre. 4ª Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1992.
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Diego participa do bate-papo Reflexões sobre os estereótipos do envelhecimento por meio da arte, que acontece no dia 1 de outubro, Dia internacional da Pessoa Idosa, no canal do Youtube do Sesc São Paulo. Participa, também, Andréa Lopes, antropóloga e docente da EACH/USP e coordenadora do grupo de pesquisa Envelhecimento, Aparência e Significado – EAPS. Mediado por Gabriel Alarcon Madureira, assistente técnico da Gerência de Estudos e Programas Sociais do Sesc São Paulo.
Este conteúdo faz parte da Mostra Sentidos – Longevidade na Arte, ação que contribui para a reflexão sobre estereótipos e preconceitos relacionados ao envelhecimento, reunindo processos artísticos virtuais de teatro e dança, com participantes do Programa Trabalho Social com Idosos – TSI, do Sesc São Paulo.
Clique aqui para saber mais ou acesse: sescsp.org.br/mostrasentidos.
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