Se tem RAP, tem RAPadura.
Tem a doçura e a força, tudo na sua medida

24/02/2022

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RAPadura Xique-Chico durante o show no Sesc Campo Limpo. Foto: Renata Teixeira

por Ronaldo Domingues

Quando a gente recebe um apelido que não gosta e fica com raiva não tem jeito: ele pega mesmo! Com o cearense Francisco Igor Almeida dos Santos não foi diferente. Aos 13 anos, quando se mudou com sua família, de Lagoa Seca/ Fortaleza para Planaltina, no Distrito Federal, trouxe com ele o costume de comer rapadura, aquele doce feito a partir da cana de açúcar, fabricado em mais de 30 países e aqui no Brasil tem o Nordeste como maior produtor. Foi um prato cheio para as provocações dos colegas de futebol que o apelidaram com o nome do doce: Rapadura. 

O que era para ter sido um grande problema (e até foi no início), Francisco conseguiu transformar em solução. Com maturidade, o garoto percebeu que o apelido fazia parte da sua essência. Acabara de conhecer o RAP e em sua sabedoria notou que a palavra RAPadura tinha RAP em sua composição.”Eu vi que o RAP tá dentro de RAPadura, assim como o RAP está dentro de mim. Então tem tudo a ver: tem a doçura e tem a força, tudo na sua medida”, conta o rapper que adotou o nome artístico RAPadura Xique-Chico. 

A busca por esse equilíbrio tem sido constante na vida do artista, que com inteligência sabe driblar os obstáculos que surgem pelo caminho. Transformando a raiva em potência e a dor em poesia,  RAPadura é um grande nome da cena musical, conhecido pela inovação e criatividade de suas composições que misturam ritmos regionais com o RAP, além de letras potentes que mostram o respeito pelas suas raízes, a conexão com os ancestrais e a valorização da cultura nordestina. 

Com mais de 20 anos de carreira, o rapper coleciona grandes parcerias, indicações e prêmios importantes. Já dividiu o palco e projetos musicais com nomes como Rashid, BaianaSystem, O Rappa, Whindersson Nunes, Alok, Lenine, Gerson King Combo, Maria Rita, MV Bill, GOG, Racionais MC’s, entre outros; conquistou o Prêmio Hutúz na categoria melhor artista norte/nordeste; foi indicado ao VMB (Vídeo Music Brasil) em 2007 e 2009 como Aposta MTV; em 2012 e 2013 representou o Brasil no exterior (Portugal); e em 2020 foi indicado ao Grammy Latino, na categoria “Melhor Álbum de Rock ou de música alternativa em Língua Portuguesa”, com o disco “Universo do canto falado”. 

Antes de se apresentar no Sesc Campo Limpo, ao lado de Rincon Sapiência, para o Festival Refestália¹, o cantor bateu um papo com a gente. Memórias, sabedoria, raízes, preconceito, arte, sonhos…rolou até um spoiler sobre o trabalho que está desenvolvendo, em parceria com os indígenas. É isso aí: um dos melhores speedflow² que você conhece vem do Nordeste! 

Show RAPadura Xique-Chico e Rincon Sapiência no Sesc Campo Limpo. Foto: Renata Teixeira

Pra começar, de onde surgiu o nome RAPadura? 

RAPadura XC: O apelido Rapadura surgiu quando a minha família se mudou do Ceará para o Distrito Federal. A gente foi morar em Planaltina. Toda vez que eu ia jogar futebol com a galera, com os moleques lá da área, eu tinha recém chegado do Nordeste, e eu comia muita rapadura. Toda hora que alguém me via, eu estava com um pote de rapadura, que nunca faltou a rapadura e farinha em casa.  

E aí ficaram “ô Rapadura, Rapadura” pra tentar me afetar, para que eu ficasse com raiva, né? E no momento eu fiquei mesmo. Mas aí eu fiquei com raiva e o apelido pegou. Quando a gente fica com raiva não tem jeito. E aí ficou Rapadura, Rapadura. Mas depois eu vi que o RAP tá dentro de RAPadura. Assim como o RAP está dentro de mim. Então tem tudo a ver: tem a doçura e tem a força, tudo na sua medida.

Uma das propostas do festival Refestália é que o público possa misturar as percepções sobre moderno, tradicional e contemporâneo. Isso também está presente nas suas composições, principalmente nessa mistura de ritmos. De onde surgiu essa ideia de misturar RAP com ritmos brasileiros, regionais?   

RAPadura XC: Quando eu cheguei no Distrito Federal, eu conheci o Hip Hop através do break e depois comecei a escrever umas letras. Eu sempre fui muito bom em poesia e redação, então para escrever letra foi um passo muito curto. Eu lembro que eu comecei a fazer o RAP tradicional mesmo, falando das questões sociais, raciais, periferia, desigualdade e tal… E aí meu pai me fez uma crítica. Ele falou “Pô! mas você só fica falando disso, de tiro, não sei o quê. E a sua terra, de onde você veio?” 

E foi uma crítica que, no momento eu fiquei com muita raiva porque ele não queria me deixar ouvir RAP, ele falava que era música de bandido, de vagabundo e tal. Só que eu me identificava muito com o RAP, pela linguagem e pela maneira como protesta, como fala do que você sente. E foi aí que eu decidi juntar as duas coisas. Já que eu tinha uma cultura tão bonita, tão rica e tinha o RAP ali que eu estava apaixonado, que eu tinha acabado de conhecer, falei “Por que que eu não misturo essas duas coisas?”  

Aí eu ouvi uma música do Luiz Gonzaga chamada “Eu e o meu fole”. Tinha uma batida de zabumba. Eu sampleei esse pedaço da música, botei um beat, batendo igual a zabumba e fiz a música chamada “Amor popular”, que fala sobre a cultura da minha terra. Depois disso, eu nunca mais parei, tanto que eu sou pioneiro dessa mistura de ritmos, de RAP com música nordestina. E isso ganhou o mundo, ganhou o universo.

Você acha que dessa forma é possível aproximar as gerações? Unir os universos? 

RAPadura XC: Com certeza, porque eu não podia ouvir RAP em casa, eu era proibido. Meu pai me batia se ele me pegasse [ouvindo RAP]. Depois disso, ele começou a me incentivar. Eu quebrei o preconceito dentro da minha casa com essa mistura.  

E eu juntei a minha mãe e o meu pai com a minha era, que era outra, com a minha época. Então, olha que coisa maravilhosa: você quebrar o preconceito, fazendo uma mistura que agrada a um e a outro. Então é lindo demais!

RAPadura Xique-Chico durante o show no Sesc Campo Limpo. Foto: Renata Teixeira

A música “Norte Nordeste Me Veste” pode ser considerada um divisor de águas na sua vida? Qual a importância dessa música pra você e para as pessoas do Nordeste? 

RAPadura XC: A “Norte Nordeste” é um marco na minha carreira e um marco na história do RAP também porque ela se tornou um hino de luta popular, se tornou um hino contra a xenofobia. É um hino que sempre que tem passeata, manifestação contra a xenofobia, essa música está presente. E o mais interessante de tudo: ela não fala só de mim, ela fala de muita gente. E muita gente que construiu essa cidade aqui também, que ergueu nos ombros, que sangrou, que chorou e ergueu tudo isso aqui. Então eu tenho muito orgulho. Eu sou muito abençoado de ter sido inspirado a essa luta. 

E a raiva quando usada com sabedoria ela se transforma nessa potência. Porque eu tinha acabado de sofrer vários preconceitos no Sudeste e aí eu fui inspirado a escrever essa música por causa dessa raiva, desse momento ruim que eu passei, transformando energia negativa em positiva, que é o trabalho da arte, que é a função da arte.

Minhas irmãs, meus irmãos 
Se assumam como realmente são 
Não deixem que suas matrizes 
Que suas raízes morram por falta de irrigação

Trecho da música Nordeste Me Veste 

Qual o sentido de fazer música pra você?  

RAPadura XC: A música…eu não faço a música, a música é que me faz. A música que faz ser o ser que eu sou e me faz cantar por tantos, numa só voz.

Você já falou que suas músicas foram criadas em momentos difíceis da sua vida e com inteligência, você transforma a dor em poesia. Nesse sentido, qual a importância da arte para o ser humano? 

RAPadura XC: Nietzsche já falava: Um mundo sem música não tem sentido. É cor. Várias cores juntas, vários pensamentos em busca de um mesmo ideal, que é o bem comum da maioria da nossa população. 

A arte, quando ela entra na minha vida, entra como uma válvula de escape. Ela entra como um antidepressivo, entra como terapia. Ela entrou muitas vezes como mãe e pai, no momento em que eu não tive diálogo com meus pais. E ouvindo outros artistas eu aprendi, artistas mais antigos, como Thaíde, GOG, Câmbio Negro… A arte, ela disciplina, ela ensina, educa. Eu não tive muita educação de escola, mas eu tive a educação da arte, que é uma educação humana, humanitária.

RAPadura Xique-Chico e Rincon Sapiência durante o show no Sesc Campo Limpo. Foto: Renata Teixeira

O que a gente pode esperar dessa parceria entre você e o Rincon Sapiência. Vocês têm muitas coisas em comum, como a inteligência, o jogo de palavras, a busca pela mistura de ritmos e principalmente o respeito pelos ancestrais e a exaltação das origens. Esse é o caminho?  

RAPadura XC: Rincon eu já conheço há muitos anos. A gente já se cruzou várias vezes em eventos aqui em São Paulo por mais de dez anos para trás, tá ligado? E eu sempre percebi que tinha muita coisa a ver, tinha muita coisa em comum: na abordagem, nas raízes, na forma de falar do nosso povo. E ao mesmo tempo tem as coisas diferentes. A diferença que é tão legal, que é essa coisa de você ter ao mesmo tempo a cultura nordestina e a cultura da metrópole. Ter a cultura urbana junto com a rural.  

Eu acho que é mais ou menos essa a proposta: é o rural e o urbano, é o antigo e o atual, o antigo e o moderno, juntos na mesma proposta, falando a mesma linguagem. Cada um do seu jeito, mas no mesmo ideal, no mesmo propósito. Eu acho que esse é o caminho: a união. A união é o que faz a força de fato.

O que você sonha pra música?  

RAPadura XC: O nosso país é muito rico em cultura. Se você for em cada estado, parece que é um país. O meu sonho é que cada estado reconheça a sua raiz, a sua cultura. Imagina o RAP em cada estado, com a cara daquele estado!? É um sonho meu, é uma doideira, é uma utopia…quem sabe? 

Se você for no Amapá tem o Tambor de Marabaixo, você vai no Pará, tem o Carimbó, na Bahia tem os Afoxés. Então tipo. Olha que coisa linda! Tanta cultura! Imagina isso tudo dentro do RAP?! Dentro do break também já acontece muito a mistura da capoeira com a dança. Imagine isso no RAP!? Coisa linda demais! 

E a nossa raiz primária, que são os indígenas. É muito importante também ressaltar. A minha família é indígena e eu sempre tive nessa causa. Eu tô fazendo um trabalho com os Krenak, estou fazendo um trabalho com os Pataxós. Então em breve tá saindo aí uns projetos com os indígenas também. 

E é isso: é lutar pelo que a gente acredita. Esse é o poder da arte, o poder da transformação, o poder da mudança. Mas não é a mudança que se faz só, é a mudança que se faz com muita gente, trabalhando junto com o mesmo objetivo.

Tem alguma dica para uma garota ou garoto que está querendo trilhar esse mundo da arte e da música? 

RAPadura XC: Para você que tem um sonho, que gosta de arte, seja a pintura, seja a dança, seja poesia…Acredite no seu sonho e tenha a coragem de ser você mesmo. A gente paga um preço muito caro por ser quem nós somos, por sermos sinceros, por falar a verdade, por buscar os ideais.  

Às vezes a gente até sofre alguma exclusão ou boicote por falar as coisas que a gente pensa, mas nunca deixe de falar o que você pensa, o que você sente. Porque isso é um caminho que vai no oposto da depressão, que é libertar, que é soltar, que é desabafar. E a arte é uma válvula de escape para a juventude. A arte é a luz. É a luz da humanidade, é a arte.


¹O Festival Refestália é uma das atrações do Diversos 22 – Projetos, Memórias, Conexões, que se estende ao longo de 2022 e propõe uma análise crítica do Centenário de Arte Moderna (1922) e do Bicentenário da Independência do Brasil (1822). A programação completa pode ser acessada em: www.sescsp.org.br/diversos22  

²Speedflow. No RAP, o termo “Flow” (“fluxo”, em tradução livre) é usado para descrever a relação entre o ritmo e o som da música. Muitos fatores são determinantes para um bom “flow”, como timbre vocal, tom, altura e rima. Speedflow é uma das técnicas que os rappers utilizam nas composições para inserir grandes sequências de frases em ritmo acelerado, respeitando a batida e o andamento da música.

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