Disco dá sequência aos projetos Encantaria (2017) e Donzela Guerreira (2010) ao abordar saudade, separações pelos oceanos e o trauma da escravidão a partir da diáspora africana
Como se um livro de História viesse acompanhado de páginas pautadas de harmonias, arranjos e melodias, nos últimos 30 anos, o Grupo ANIMA trafega pelos meandros de origens indígena, africana e ibérica da tradição oral brasileira. Conexões mitológicas, políticas e sociológicas tecidas a partir de pesquisas e sonoridades da Idade Média e da cultura renascentista, também movimentam os encontros da música antiga e popular em uma expressão musical historicamente orientada.
Desde 2010, o conjunto de música de câmara celebra a trilogia do Imaginário Sonoro Brasileiro. Ao lado do Selo Sesc, três álbuns ganharam forma como parte da identidade musical do Brasil, por meio de instrumentos e da mistura de sons provenientes de outras culturas e de outros tempos. Inspirado no livro homônimo de Walnice Nogueira Galvão, o álbum Donzela Guerreira (2010), apresenta um intenso estudo sonoro cujas obras abordam arquétipos da heroína que oscila entre características masculinas e femininas. A segunda parte da série percorre o espaço imaginário entre a mitologia e a história de Encantaria (2017), ao traçar um roteiro dramatúrgico musical sobre o mito milenarista do sebastianismo (desaparecimento do Rei Dom Sebastião, na batalha de Alcácer Quibir, no Marrocos, em 1578).
Por fim, o último volume do tríptico, intitulado Mar Anterior (2020), acaba de chegar ao Sesc Digital e às plataformas de streaming em 10 de junho. Com 19 faixas, o disco físico – ainda sem data de lançamento por causa da Covid-19 – acompanha um livreto de 112 páginas, o qual conta com obras da artista visual Rosana Paulino, também responsável pela ilustração da capa; texto de autoria do medievalista português Manuel Pedro Ferreira; fotos de Daniel Bittar; e comentários do ogã Leandro Perez (músico convidado), de Luiz Fiaminghi, Paulo Dias e Valeria Bittar sobre o encontro da música dos povos conquistados e apartados de suas origens, e em especial, dos povos africanos escravizados, com cantigas e danças da Idade Média.
Dentro do contexto de colonização e dos relatos históricos da tradição oral popular, este novo trabalho ressoa as perdas e o sentimento de saudade, fazendo-se ouvir por meio dos tambores dos orixás do candomblé junto às lembranças saudosistas encontradas na poesia medieval portuguesa, presente nas cantigas de amor do Rei Trovador Dom Dinis (1261-1325). Essa peregrinação de musicalidades destacam as polirritmias dos tambores dos orixás e toques de linhas-guias em contato com danças e cantigas da Idade Média, evidenciados nos arranjos tecidos num roteiro dramatúrgico.
Para o professor e doutor em estudos musicológicos da Universidade NOVA de Lisboa, Manuel Pedro Ferreira, o ANIMA abraçou a pluralidade ao construir o diálogo intramusical entre Dom Dinis e o candomblé. “Sobrepor cantigas medievais e música de candomblé sinaliza mais a compatibilidade do que a diferença, lembrando que a continuidade histórica dos contatos entre a cultura europeia e as culturas africanas, quer a desejável comunicabilidade entre gêneros e esferas sociais. Esta abordagem é, em suma, uma ousadia artística e uma afirmação política; uma visão da alma brasileira e uma concepção de harmonização social”, afirma.
Na qualidade de mestre-residente da música do candomblé Ketu e integrante do projeto, o ogã Leandro Perez conta que o rito africano precisa ser entendido como uma identidade e musicalidade relacional. “Falar do candomblé não é só tocar atabaque, é entender o contexto da cantiga durante o canto, a dança, as festividades, a culinária, as vestes… Tudo está integrado. É uma cultura, não só um ritmo. Nas músicas do ANIMA [tendo aqui como fonte o diálogo entre os tambores da cultura do candomblé], o Rum (tambor) dialoga com o Rumpi, com a cantiga, com outros instrumentos e arranjos. Um dos significados do Rum é fala, é o tambor que fala”.
Com Mar Anterior, o Grupo ANIMA também denota a importância de trazer à tona repertórios afastados e adormecidos da memória musical do país, os quais foram registrados por Mário de Andrade na Missão de Pesquisas de 1929 e por uma equipe organizada por ele, na Missão de Pesquisas Folclóricas, de 1938, cujo material foi relançado recentemente pelo Selo Sesc e a Secretaria Municipal de São Paulo, em forma de coletânea. Em 1937, sob direção do escritor modernista, o Departamento de Cultura de São Paulo enviou a Salvador o compositor e maestro Camargo Guarnieri para participar do II Congresso Afro-Brasileiro com a finalidade de recolher melodias populares, cânticos de orixás, cantos das Nações Ketu e Angola e do candomblé de Caboclo. Pesquisador de música tradicional popular, Guarnieri foi o responsável pela transcrição de aproximadamente 300 cantigas da cultura do candomblé, publicadas posteriormente em 1947. Agora, após serem apartadas pelo tempo, podem ser revividas nos arranjos do disco.
Ouça o inédito MAR ANTERIOR com exclusividade na plataforma Sesc Digital
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