ÂNGELA MUCIDA
Antes de abordar o tema em questão indicaremos rapidamente alguns pontos em comum às visões mítica e religiosa concernentes à mulher, para em seguida retomar com a Psicanálise, a partir de algumas indicações de Freud e Lacan, o conceito de sexualidade, mulher e feminino.
Se Freud pôde interrogar com clareza o que é e o que quer uma mulher, tais questões não são, entretanto, um privilégio do inventor da Psicanálise. Desde os primórdios de nossa civilização a mulher e sua sexualidade suscitam questões e diferentes interpretações que se estendem dos mitos ao saber científico. Concebida como mistério, ela é fonte de inspiração para muitos mitos e concepções religiosas nas quais, não raro, ela é associada ao pecado, à ruína e ao mal-entendido. Esse mistério em torno do funcionamento da sexualidade feminina se encontra presente em muitas sociedades primitivas, onde a mulher se constitui um tabu. O mistério da sexualidade feminina é tema de pesquisas contemporâneas que tentam responder, sem grande sucesso, sobre todo seu funcionamento e sobre aquilo que é próprio à feminilidade.
Na história da humanidade o mito bíblico de Adão e Eva não se constitui uma exceção ao lugar reservado à mulher. Ele exibe uma ambiguidade interessante que vemos se apresentar em outros mitos; portadora do pecado e responsável pela expulsão do paraíso, Eva é também aquela que com sua curiosidade inaugura a possibilidade de saber. Feminino, curiosidade, transgressão e busca do saber formam uma cadeia que se liga, por sua vez, ao inesperado e à estrutura de falta presente na relação do homem com a linguagem. A busca do saber – necessária para oferecer ao sujeito a possibilidade de compreender e conduzir sua realidade – alia-se a certa vivência de sofrimento. Ao tentar nomear, o sujeito depara-se com o limite da palavra; faltam palavras para nomear seu ser, seu desejo, suas escolhas, os laços com o Outro bem como faltam palavras para explicitar sua escolha sexual. A sexualidade escapa sempre a cada um.
O mito de Eva sinaliza que só é possível ascender a algum saber perdendo-se a totalidade fechada e fusionária do paraíso. Ele demonstra ainda a condição de desamparo constitutiva dos seres que falam. Às descendentes de Eva reservou-se ainda a dor corporal, representada pelo parto, como parte do pagamento da dívida pela transgressão, curiosidade e pela perda do paraíso. Nessa punição a figura de mulher se mistura à de mãe.
A mitologia grega é rica de figuras femininas nas quais se associam beleza, feminilidade, meiguice, sabedoria, intuição, mistério, curiosidade, mas que portam o germe da traição e da mentira. Em todos esses mitos prevalece a mesma estrutura: a mulher com sua curiosidade desperta o mal e o sofrimento, trazendo, concomitantemente, uma mensagem a ser decifrada ou um ensinamento.
Nesta direção o mito de Pandora é um paradigma. Mulher que carrega em si as qualidades acima mencionadas, aquela que “tudo tem e tudo dá” é a enviada pelos Deuses para espalhar aos homens todos
os males que os assolam. Criada por Zeus como punição aos homens por herdarem de Prometeu o segredo do fogo, desobedece à ordem de seu marido Epimeteu de que não abrisse jamais certa caixa. Tomada pela curiosidade Pandora abre-a, espalhando todos os males (doenças, vícios, pragas, catástrofes), mas deixando em seu fundo a única virtude, a esperança; “à espera de alguma coisa”. Tradução interessante para reafirmar nossa hipótese; a mulher, metáfora do pecado, do mal, da dor, entre outros males, porta em si o inesperado, o que não tem nome e se abre ao novo.
Podemos nos perguntar qual é a função do interdito, da curiosidade e da desobediência no caminho ao saber, e por que ele é sempre associado à condição feminina. Adiantamos uma hipótese a partir do que foi indicado anteriormente: a mulher, portando a diferença radical – retomaremos esse ponto –, traz em si um limite à Lei masculina que tem como fundamento o poder e o falo.
Mesmo que fundadora e constituinte para os homens e as mulheres, essa Lei pode tornar-se insana se não acolhe a diferença.
A metáfora da desobediência pode ser interpretada como condição do homem de ascender ao saber; única possibilidade de cada sujeito se responsabilizar e construir algo com sua diferença. Há ainda um detalhe nesse mito: Pandora abre a caixa, mas fecha-a em um momento preciso, indicando que a mulher se submete também à Lei da interdição. A metáfora da desobediência pode indicar que nenhuma lei pode pretender regular tudo. O impossível e a falha encontram-se presentes na vida.
Para abarcar o universal uma lei não pode desconsiderar o particular. Em contrapartida esses mitos exibem que toda transgressão acarreta uma punição ou a existência do retorno do ato sobre o sujeito. Não há escolha, não há ato e palavras sem consequências.
No conhecido mito de Eros e Psiquê a curiosidade e a transgressão encontram-se atreladas à concepção de amor. Talvez o amor, por sua estrutura de falta, implique sempre suportar que algo não se nomeia e não tem garantias. Mas, conforme nos indica Lacan, se Psiquê não tivesse visto o rosto de Eros, ela não ascenderia à condição de mulher, restando apenas como alma. Vale lembrar ainda a relação entre mulher e bruxa, portadora de um mal a ser extirpado, vigente na Idade Média. Se nessa época presenciamos a caça às bruxas, na qual milhares de mulheres são postas na fogueira da Santa Inquisição, o século XIX, por sua vez, tentou abrir portas “mais científicas” ao mistério feminino com a prática da histerectomia (cirurgia de retirada do útero), no intuito de exterminar os ataques histéricos a partir de uma associação errônea entre histeria e problemas do útero.
Surge nessa época o termo psiquiátrico (pitiatismo) de Babinski que se tornou o conhecido “piti”, utilizado ainda nos dias de hoje como maneira de desvalorizar as manifestações histéricas. Todavia sem as histéricas e tudo que elas denunciaram com seus corpos, seus sintomas e seus protestos, a Psicanálise não teria existido e muitas das descobertas científicas estariam ainda em estado embrionário. O discurso histérico denuncia desde sempre que o mestre não é bem o que ele se apresenta ser. Mesmo que denunciar não seja suficiente para produzir mudanças, como indicou Lacan, esse discurso produz seus efeitos ao longo da História.
A mulher, associada à falta e ao mistério, encontra-se sempre do lado do que Lacan denominou de Real: impossível de ser dito, nomeado, mas que não se apaga. O real encontra-se representado sob diferentes formas, mas em si mesmo ele é apreensível. Seus efeitos provocam a angústia, afeto que não engana e mobiliza o sujeito e expõe sinais do desejo.
Freud, o inventor da Psicanálise, indica a presença de certo horror quando as crianças de ambos os sexos se deparam com a falta de pênis, demonstrando a existência de algumas consequências psíquicas diante da diferença anatômica entre os sexos. Mesmo que a anatomia não seja em si determinante na escolha sexual, não há como desconsiderar o real do sexo. Todavia a diferença, possuir um órgão sexual masculino ou feminino, é apreendida por ambos os sexos como presença e ausência de pênis e não como presença de órgãos genitais diferenciados.
Pode-se imaginar que as crianças de hoje, vivendo uma época totalmente informatizada, não sofram os efeitos psíquicos desse real e que isso concerniria apenas à época em que Freud desenvolveu essa teoria. Mas não é o que se passa. Apesar de toda informação atual, há sempre algo insuportável na descoberta da diferença sexual que a criança tende a negar, produzindo teorias para explicá-la. Uma delas é a de que, se o pênis não se encontra presente, é porque algo de trágico se passou.
Essa ideia imaginária de castração, tendo por objeto real o pênis, encontra-se na raiz de muitos sintomas e escolhas sexuais. Tomado como símbolo da completude, o falo, representação imaginária do pênis, torna-se palco para muitas ideias associadas ao poder. Basta verificar em diferentes civilizações as conotações de poder e potência dadas aos objetos fálicos.
Esses efeitos psíquicos, advindos de uma falsa interpretação da realidade, tomando a mulher como representante da falta e da incompletude, têm diferentes efeitos nas culturas. Se as tribos primitivas, existentes ainda, tomam a mulher como tabu, nas culturas contemporâneas presenciamos diversas maneiras do horror ou da depreciação ao feminino.
Freud indica ainda que o inconsciente desconhece a diferença sexual; ali só existe o sim ou o não, a presença ou a ausência de pênis. Todavia, possuir o órgão masculino não faz um homem e, muito menos, ter uma vagina faz uma mulher.
Não obstante, se o homem pode muito comumente reconhecer seu “ser” de homem pela identificação fálica, o mesmo não ocorre com as mulheres. Em nosso contexto as mulheres ocupam hoje cargos e funções antes destinados apenas aos homens; encontram-se na política, dirigem instituições, são independentes financeiramente, mas elas não reconhecem nessas conquistas seu ser de mulher. Nem mesmo a maternidade ou o casamento, como supunha Freud, são suficientes para que uma mulher se reconheça como mulher. Podemos resumidamente afirmar que as teorias freudianas do Édipo se constituem respostas sobre a sexualidade masculina e a identificação fálica, deixando em aberto a questão do que seja a mulher. Apesar disso Freud nos deixa indicações importantes, sobretudo ao acentuar uma assimetria radical entre homens e mulheres. Hoje vivenciamos, ao contrário, uma tentativa de igualar os sexos. A cultura do unissex, tendo como norma a identificação masculina, dita uma simetria sexual que provoca efeitos destrutivos nos laços entre homens e mulheres. Se tudo se torna igual, onde encontrar os traços da diferença que servem de atração entre os sexos? Mesmo entre os casais homossexuais a diferença é essencial à atração sexual. Uma coisa é igualar os direitos do cidadão e outra é tentar igualar os sujeitos e os sexos.
Outra herança freudiana é de que uma mulher, apesar dos órgãos femininos, não nasce mulher, ela se torna mulher ou ela encontra o que lhe é próprio, quando vai além da identificação fálica, ao passo que o homem encontra traços de seu “ser” de homem por essa identificação.
Explicitemos melhor. Se para os dois sexos o primeiro objeto de amor é a mãe ou quem ocupa esta função, no caso do menino a escolha por uma mulher passa pela identificação com o pai na busca de uma escolha semelhante à dele. Isso não implica que não haja inversões. De toda maneira o homem se identifica como homem pela via fálica. No caso da mulher a questão se complica: o primeiro objeto de amor é também a mãe, como para o menino, mas ela deve se identificar a esse objeto que se torna, ao mesmo tempo, rival. O caminho à feminilidade encontra, pois, duas funções nada fáceis: a troca de objeto de amor, passar da mãe ao pai, e, ao mesmo tempo, identificar-se com esse objeto abandonado que é, muitas vezes, palco de críticas, ressentimentos e rivalidades.
A anatomia oferece apenas uma certeza do gênero. Ela não responde sobre a escolha sexual e, muito menos, sobre o que seja uma mulher ou um homem. Nesta direção, as diferentes culturas tentam oferecer ícones do que seja um homem e uma mulher, sobretudo servindo-se dos objetos de consumo. Algumas tentam fazer uma analogia entre atividade e masculinidade, e passividade e feminilidade. Para Freud a pulsão sexual é sempre ativa e a libido é sempre masculina, estejam presentes em homens ou mulheres. A supressão da agressividade nas mulheres é algo cultural.
A ciência, por sua vez, tenta responder à diferença sinalizando caracteres secundários femininos e masculinos, óvulos e espermatozoides. Mas a masculinidade e a feminilidade fogem ao alcance da anatomia. O que é e o que quer uma mulher são questões presentes para os homens e para as próprias mulheres. É por isso que muitas elegem um ideal feminino, a outra, como maneira de responder a essas complexas questões.
Lacan sinaliza que sexualidade é colocada para os seres falantes, à diferença dos animais, pela falta de nomeação. Falta palavra (significante) para nomear o sexo feminino, representante psíquico da falta e, portanto, portadora do enigma sexual. A falta apresenta-se para ambos os sexos, pois, como dissemos, a referência é a presença ou ausência do pênis, representado pelo falo, símbolo imaginário da completude. Mas a mulher, voltamos a frisar, na qualidade de ser falante encontra-se como o homem, inscrita pela referência fálica, mas essa referência não consegue definir seu ser de mulher. Lacan diferencia a mulher da mãe; ser mãe é algo inscrito também na função fálica. Muitas mães tomam seus filhos como substitutos da falta, mas isso não as realiza como mulher. Ele sublinha ainda que a Mulher, escrita com letra maiúscula, não existe (sua existência encontra-se apenas no imaginário de algumas mulheres e homens).
Lacan diferencia ainda o feminino da mulher histérica. Esta se encontra presa à referência fálica. Nesta direção, presencia-se nas histéricas uma rede infindável de demandas, queixas e insatisfações. Cultivando ainda o sentimento de menos valia, elas elegem outra mulher como tentativa à resposta: o que é uma mulher?
A posição feminina indo além da referência ao falo implica, sobretudo, suportar que algo falte, e falta também para os homens, e fazer algo com essa falta. Isso se difere do uso de certas “máscaras” pelas quais algumas mulheres dão ares de masoquista, sofredora, “Amélia”, mulher fatal, submissa, entre outras “máscaras”, para “darem ares de mulher” Como sinaliza Colette Soler, tais posições só colocam à distância o desejo feminino. Demandar e estar sempre insatisfeita define a mulher histérica, mas não a posição feminina.
Retomaremos brevemente algumas discussões que já desenvolvemos em outra época8. Desses trabalhos extraímos algumas teses relativas ao conceito de sexualidade em Psicanálise e que tocam o nosso tema no momento.
Pelo exposto até aqui se torna claro que a sexualidade para a Psicanálise não se reduz ao sexo nem ao encontro sexual. Ela se posta para o sujeito bem cedo, pelos primeiros encontros com o Outro, a mãe ou quem cuida da criança. Essas experiências deixam marcas para a criança que vão muito além dos cuidados em torno da necessidade: comer, beber, dormir, ser cuidado fisicamente e higienicamente. Nesses encontros algo é oferecido à criança sem que ela peça isso ou aquilo O bebê chora porque tem algum desconforto e a mãe tenta aplacar o choro. Às vezes ela acerta e às vezes erra nas interpretações e ações para tratar o mal-estar.
De toda maneira algo é oferecido e provoca alguma “satisfação” que não implica necessariamente o prazer.
Contudo há um descompasso entre o que se pede, ou nem se pede, e o que se recebe. Entre o que se pede e o que se recebe, nesse intervalo, surge o desejo. Nosso desejo se estrutura, pois, por uma falha. Desejamos porque algo nos falta, mas essa falta não é preenchível. Falta o objeto perfeitamente adequado ao desejo e por isso criamos objetos pela falta do objeto adequado.
A sexualidade constitui-se por pequenos traços, marcas que nos escapam e não formam uma totalidade. A incompletude faz parte do amor e dos encontros sexuais, pois em ambos encontra-se presente a fantasia. É a fantasia em torno do objeto que sustenta o desejo e não o objeto em si. Vale lembrar que para Freud a sexualidade adulta é a sexualidade infantil. A sexualidade adulta encontra seu “substrato” nas marcas da infância com seus primeiros objetos de amor e as experiências de prazer e desprazer. Os traços precocemente recebidos incidem sobre as escolhas posteriores, as preferências ou aquilo que não se suporta no campo sexual.
Não havendo instinto sexual, não há um conector entre um homem e uma mulher aos moldes do encontro entre um macho e uma fêmea, como se pode observar no mundo animal. Por isso a atração entre os sexos é algo tão complexo.
Não existem regras sexuais, mas regras sociais e cada época, cada cultura ou cada discurso tem suas regras e maneiras de conduzir a sexualidade. Assim a sexualidade de cada um não se globaliza.
Na clínica e fora dela escuto de diferentes mulheres queixas concernentes aos efeitos da menopausa sobre seu estado de humor, sintomas como “fogachos”, secura vaginal, instabilidade de humor, secura da pele, entre outros sintomas corporais. Mas nem todas as mulheres sofrem da mesma forma esses efeitos e algumas, inclusive, vivem a menopausa de maneira branda e tranquila, encontrando substituições interessantes para algumas perdas inevitáveis. É certo que são efetivas as mudanças hormonais, mas não se podem desconhecer também os efeitos sobre as mulheres de tudo que circula sobre a menopausa e a velhice, com seus prognósticos muitas vezes amedrontadores levando à ideia de um destino funesto.
Se a reposição hormonal foi concebida anos atrás como uma saída para a baixa de estrógeno no organismo, hoje há controvérsias sobre essa prescrição e ela não é indicada em casos de histórico de câncer. Além do mais são muitos os efeitos colaterais do uso de hormônios, sobretudo quando utilizados por longos anos. A opção de uma terapia hormonal não se faz sem ressalvas nem é indicada a todas as mulheres. Não nos deteremos na análise dos prós e contras da terapia hormonal, pois não é nosso campo de estudo, mas apenas no que tange a alguns dos efeitos reais e imaginários da menopausa.
Algumas mulheres dizem sentir-se “elas mesmas” com o uso do hormônio; com mais libido, mais jovens e femininas. Mas isso não ocorre da mesma maneira com todas, e algumas, mesmo com a reposição, continuam a se queixar do envelhecimento, sentem-se desvalorizadas sexualmente com a entrada na menopausa e queixam-se de outros sintomas.
Isso para dizer que é ilusório pensar que a terapia hormonal resolveria todas as questões trazidas pela menopausa e o envelhecimento, pois eles se associam a traços singulares. A menopausa e o envelhecimento não trazem em cena outro sujeito.
É comum encontrar mulheres que fazem uma relação direta entre algumas modificações trazidas pelo envelhecimento e a perda dos atrativos sexuais. Muitas consideram que com o passar do tempo perdem as chances de encontros sexuais e amorosos, como se estes fossem destinados apenas às jovens, tecendo uma relação direta entre a atração sexual e juventude.
Dessa maneira elas descuidam de si mesmas, pois tomam as mudanças como um trágico destino diante do qual não haveria nada a fazer. Esse pensamento se alia ao mal-estar da cultura, presente em cada época e cada cultura, como efeito dos discursos e do saber produzidos.
Em nosso caso, sofremos os efeitos da “globalização”, que toca de maneira pungente o envelhecimento. Sofremos os efeitos do mercado das “novidades”, para ironizar um pouco essa gama de objetos fabricados pelo mercado que portam o selo do “novo” e se oferecem como produtores de felicidade. Essa “nova geração” de objetos e serviços se impõe como uma verdadeira ditadura contra o envelhecimento. Só é atrativo o novo com uma beleza programada pela nova “aldeia” global. Esse imperativo, apagar as diferenças em prol de uma mesma “estampa”, uma mesma forma de fazer laços sociais, escolher e desejar, empobrece as relações, suscitando angústia e outros sintomas e demonstrando que algo do sujeito resiste, ainda bem!
Então, o que dizer das mulheres que já não portam mais os traços da juventude? A mulher “balzaquiana”, termo utilizado em décadas passadas para se nomear as ditas “solteironas”, foi inspiração do romance de Balzac escrito em 1834, intitulado A mulher de trinta anos10. Ao contrário do sentido depreciativo deste termo em nossa cultura, Balzac tornou-se conhecido por ter sido um escritor que valorizou as mulheres “maduras” da época. O romance exibe traços “psicológicos” interessantes da mulher madura da época, valorizando-os em detrimento daqueles encontrados em jovens. Hoje estranharíamos considerar uma mulher de 30 anos solteirona ou “madura”.
De toda maneira a “mulher balzaquiana” ensina que “mulher” e “mulher madura” são conceitos criados culturalmente. Podemos interrogar como seria a mulher madura de hoje e como Balzac poderia descrevêla. Talvez ele encontrasse traços os mais contraditórios convivendo juntos. Mas, com certeza, ele observaria que não apenas a mulher e sua sexualidade, mas tudo que tange o envelhecimento se encontra no geral sob o signo da desvalorização.
Regrada pela importação de muitos hábitos americanos nos quais imperam juventude, poder e um tipo determinado de beleza, nossa cultura produz discursos contraditórios sobre a mulher “madura”. Em uma cultura na qual predominam tipos empobrecidos de beleza e feminilidade, o mercado dos bisturis torna-se o suporte para muitas das insatisfações consigo e com as imagens. Destinado ao público de qualquer idade, esse mercado toma no Brasil proporções enormes, com técnicas invasivas que podem gerar problemas irremediáveis. Grande parte dessas intervenções é feita sem uma reflexão mais apurada do que se quer cortar ou mudar no corpo. O espaço entre a demanda e a resposta é pequeno, não permitindo ao sujeito se deparar com aquilo que deseja. O resultado muitas vezes não atende ao imaginado, gerando outro campo de insatisfação e, por vezes, outros bisturis. Não se trata aqui de uma apologia contra o uso das próteses e cirurgias estéticas, mas uma crítica ao imediatismo de muitas dessas ofertas de mercado.
Há casos, quando o sujeito se encontra naquilo que demanda e deseja, em que uma intervenção traz bons efeitos sobre a relação do sujeito com sua imagem. Entretanto não se pode desconhecer que uma insatisfação com a imagem vai além daquela exibida pelo espelho real.
Na velha Paris, cidade da moda e da estética, veem-se pelas ruas centenas de mulheres com seus cabelos brancos, suas rugas e outras marcas do tempo, e que nem por isso se apresentam mais envelhecidas.
Essa cultura, ao contrário do que prevalece entre nós, parece acolher melhor algumas marcas do envelhecimento, e muitas mulheres, identificadas a uma maneira singular de envelhecer e de tratar os efeitos do envelhecimento, encontram com mais facilidade os caminhos para dispor sua sensualidade e sexualidade. Além do mais, essas mulheres se encontram atuantes na política, no campo artístico, social e cultural, continuando a exercer de outras maneiras a feminilidade.
Em nosso mal-estar o senso de estética se tornou medíocre, porque uniformizado e sem lugar para a diferença. Nenhum tratamento estético pode parar os efeitos da passagem do tempo. As intervenções cirúrgicas têm seus limites e a insistência além desses limites provoca efeitos nocivos sobre o corpo e a imagem. Nenhuma cirurgia estética pode resolver a relação, muitas vezes de ódio, que o sujeito tem com sua imagem e cujo envelhecimento apenas é o bode expiatório. Odiar a imagem não é indiferente à formação de vários sintomas e isso recai inevitavelmente sobre a sexualidade.
Como salientamos, não existem regras para a atração entre os sexos e, desconhecendo isso e colocando-se do lado dos objetos que não têm mais serventia, muitas mulheres sentem-se elas mesmas portadoras de um mal que não tem cura. Como se sentirem atraentes diante do olhar do Outro se elas mesmas se recolhem ou escondem-se de si mesmas? Somando-se a isso, não são poucas as que fazem um pacto bizarro com o lema machista: “as mulheres envelhecem e os homens tornam-se charmosos”.
Imaginário que não se sustenta, pois, se as mulheres idosas de hoje sofrem os efeitos das mudanças, sobretudo sobre a imagem, há efeitos da passagem do tempo também sobre os homens que tocam à diminuição da potência e do poder relativo ao trabalho.
Agarrando-se unicamente aos valores ditados pela cultura em torno da beleza, da sensualidade e da feminilidade, algumas mulheres suportam muito mal a passagem do tempo. É fato que não é fácil para ninguém envelhecer, mas não se constitui uma saída tentar esconder ou esquivar-se dele, pois ele não se apaga e pertence a todos. Toda perda exige um trabalho de luto, implicando com isso suportar as mudanças e abrir outras vias de inscrição da feminilidade. Dado que o envelhecimento, da forma como ocorre atualmente, é algo novo entre nós, cabe às mulheres “maduras” de hoje criar novos espaços na cultura para sustentarem o desejo, suas escolhas, sua sensualidade e, sobretudo, sua feminilidade.
Deve-se levar em conta que a sensualidade passa por traços que se aliam a um modo de ser e isso se alia também à aceitação da própria imagem. Vale concluir com Proust: “(…) nenhuma importância teriam as bolsas sob os olhos e as rugas da testa se não fosse a tristeza do coração”.
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