Em janeiro e fevereiro de 1807, uma formidável enchente do rio Ribeira de Iguape castigou a Freguesia de Xiririca (hoje Eldorado, então pertencente à Vila de Iguape), bem como outros povoados de Ribeira-abaixo até as fronteiras da região.
De acordo com o segundo vereador Felipe Pinto de Almeida, encarregado pela Câmara de Iguape de registrar os fatos ocorridos naquele ano na vila, ficamos sabendo de alguns detalhes incríveis dessa terrível cheia do Ribeira:
“(…) quis Deos Nosso Senhor mostrar o castigo da sua cólera contra os habitantes desta Pais (especialmente contra os da Freguesia de Xiririca e Ribeira abaixo the a fronteira desta Villa) com huma cheia que houve na dita Ribeira tam grande e tam terrível que nunca se vio e nem as pessoas mais antigas se lembrão que ouvesse outra igoal e tam funesta como foi esta (…).”
Em três dias e duas noites, as águas do rio Ribeira cresceram cerca de sessenta palmos acima do nível normal. Todas as 120 casas da freguesia de Xiririca acabaram soterradas sob mais de seis palmos de lodo. Tudo se perdeu: casas, lavouras, propriedades. A fome começou a grassar.
A Vila de Iguape não hesitou em auxiliar os moradores da sua freguesia, enviando para Xiririca muitas sacas de farinha, que então era a base da alimentação popular. Essa farinha veio da Ilha do Mar (como então se chamava o atual município de Ilha Comprida), e também da Jureia.
Houve carestia e falta da farinha por causa dessa terrível cheia. O relato do vereador nos dá maiores informações:
“Passados os dias mais tristes deste infeliz acontecimento forão aquelles moradores ver as suas rosas [roças], nas quais não axarão coiza alguma com que pudessem ao menos remediar sua fome e das suas familias por estarem razas, humas sem couza de planta, outras podres e outras interradas seis e oito palmos debaixo do lodo que as agoas trazião: e que por este modo the hoje estão experimentando grande fome expecialmente na farinha, e por conseqüência os moradores desta Villa, que para remediarem a necessidade daquelles que se decorrião a providenciar-se das luras dos moradores da Ilha do Mar e Praia da Jureya, fazia que ouvisse carestia e falta de farinha por todo este anno (…).”
Por essa referência, o leitor fica sabendo que na Ilha Comprida – que então era conhecida como Ilha do Mar – existiam, naquele começo do século XIX, alguns lavradores, muitos dos quais se dedicavam ao plantio da mandioca, para posterior fabrico da farinha. Levando-se em conta que essa farinha foi usada para socorrer aos habitantes da Freguesia de Xiririca, é de se concluir que a sua produção fosse bastante significativa.
Texto: Roberto Fortes, morador de Iguape, graduado em Letras, escritor, poeta, historiador e jornalista.
*Esse conteúdo editorial faz parte da série online “Histórias Míticas do Vale do Ribeira” que integra a programação especial em comemoração aos 100 anos do prédio histórico do Sesc Registro, nominado “KKKK”, como ficou conhecido o conjunto arquitetônico instalado em 1922 pela Companhia Ultramarina de Desenvolvimento (de cujo nome em japonês -Kaigai Kogyo Kabushiki Kaisha- deriva a sigla dos quatro Ks). No canal do YouTube do Sesc, o público também pode acompanhar o processo de criação das ilustrações pelo artista Sávio Soares. Além de lendas e causos populares que povoam o universo da cultura tradicional regional, as publicações trazem também crônicas sobre locais, acontecimentos, paisagens e personagens históricos do Vale do Ribeira.
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