Leia a edição de junho/22 da Revista E na íntegra
Quando pensamos em música de câmara, é provável que venha logo à cabeça um trio ou quarteto de cordas tocando clássicos de Bach, Mozart ou Beethoven, em pequenas salas de concerto e para uma formação seleta de ouvintes. Mas a música de câmara composta hoje em dia é marcada pela pluralidade de estilos, formações e técnicas, com potencial para conquistar um público cada vez maior e mais diverso.
“Ao longo da história da música ocidental, a música de câmara foi construída para ser interpretada por pequenos agrupamentos de instrumentos, como trios de violinos, quartetos de cordas, octetos de sopros, corais de até 15 vozes. Porém, ela também é aquela [variedade erudita] não englobada pela música sinfônica [de orquestra]; não é difícil nem hermética, e os ouvidos curiosos costumam se apaixonar por ela”, explica Claudia Toni, uma das curadoras do 4º Festival Sesc de Música de Câmara, que será realizado de 9 a 26 de junho no Sesc São Paulo (Leia mais no boxe Entre cordas, sopros e vozes).
Sobre a contemporaneidade da música de câmara, a curadora, que também é especialista em políticas públicas para a cultura e para as artes, explica essa característica: “O festival é prova disso: nele, vamos estrear três obras compostas por jovens autores. A cada edição, trazemos peças inéditas, encomendadas especialmente para o evento, de artistas que estão produzindo hoje, com o ouvido de hoje, entendendo o mundo de hoje”.
No repertório, que ainda inclui obras compostas por mulheres e negros(as), valorizando características como a diversidade, cada vez mais presente na música de câmara, há composições dos séculos 20 e 21. “Aos poucos, vamos rompendo essa prevalência de obras do passado, o que já é preponderante em festivais na Europa e nos Estados Unidos, por exemplo. Estamos seguindo essa tendência”, complementa Claudia.
Na visão do pianista Cristian Budu, que divide a curadoria do festival com Claudia Toni e vai se apresentar em quatro concertos, o conceito de música de câmara tem mudado e se ampliado. Antes, essa formação era basicamente aquela destinada a ambientes menores, como um salão ou uma sala, e a grupos que cabiam nesses espaços. “Hoje, a definição inclui a noção de diálogo entre partes que ativamente interagem e constroem algo musicalmente, para que seja apreciado num ambiente em que cada pessoa importa”, esclarece.
Assim, baseada em atributos como o compartilhamento de ideias, a música de câmara se abre para infinitas possibilidades. “Existem hoje várias vertentes que vêm do passado, mas vivem no presente e pensam no futuro. Elas vêm de culturas e estilos diferentes que se comunicam e se inter-relacionam”, aponta Budu. Isso significa, segundo o curador, que ao mesmo tempo em que se faz música de câmara tocando um quarteto de Beethoven, por exemplo, ela também está presente em projetos que se expandem para outras áreas, que dialogam com outras formas de arte e trazem o público mais para perto. Além disso, há uma questão intergeracional envolvida, em que jovens musicistas trabalham e trocam conhecimentos com profissionais mais experientes.
“Toda essa interação de tempos diferentes, e até com outras artes, com o intuito de estabelecer um diálogo entre peças de estilos, épocas e formações distintas num mesmo espetáculo, vem de um pensamento camerístico, mais aberto. Hoje em dia, cada vez mais a gente vê grupos que já pensam de outra maneira essa estrutura tradicional da música clássica, rompendo com ela”, diz Budu. Para o curador, a pandemia fez com que os conjuntos tivessem que se reinventar para continuar produzindo mesmo a distância, conectando ideias e musicistas a fim de chegar até o público.
Seja em tempos pandêmicos ou não, a música de câmara incentiva todos os envolvidos (compositores, musicistas, regentes etc.) a debaterem e construírem algo coletivamente, o que gera muitas possibilidades e precisa ser incentivado cada vez mais, na avaliação do curador. “Ela permite um espaço onde as pessoas possam cultivar aquilo que represente e seja a cara da sociedade onde está inserida. Ela está presente na interação desses corpos e na maneira como isso dialoga com tantas questões históricas, musicais e estilísticas. Portanto, a música clássica precisa, mais do que nunca, da sua música de câmara”, conclui.
DIVERSIDADE NA PARTITURA
A inclusão de jovens, mulheres, negros(as) e moradores(as) de periferias, entre outras maiorias minorizadas, tem sido uma preocupação de instituições na hora de encomendar novos repertórios para a música de câmara, de acordo com Claudia Toni. “Há mais de 40 anos, ainda importávamos músicos no Brasil. Hoje, isso não é mais necessário, pois uma quantidade expressiva de profissionais se formou e chegou ao mercado. De modo geral, a nossa música clássica ainda é muito branca, mas está se tornando cada vez mais acessível aos(às) negros(as) e às camadas mais vulneráveis da população, com movimentos importantes de formação de jovens realizados por entidades como o Instituto Baccarelli e a Faculdade Santa Marcelina”, cita a curadora.
No caso da participação feminina, ela tem crescido entre musicistas e intérpretes da música de câmara, já representando metade ou até a maioria dos integrantes, algo que ainda não é realidade nas grandes orquestras. “Desde o século 20, temos intérpretes extraordinárias no país, cantoras que se tornaram verdadeiras celebridades. No caso das compositoras, porém, a atuação ainda tem sido limitada. Mas temos um movimento de pesquisa para recuperar obras [e artistas] que foram apagadas pela história”, revela.
Sobre a questão da diversidade, o curador Cristian Budu acrescenta que vê novas possibilidades surgindo, com projetos sociais em atividade em diversas partes do Brasil. “Porém, ainda temos muito a galgar. E a música de câmara tem um papel crucial nisso, para que essa ideia seja fomentada e haja inclusão de mais jovens, estudantes e iniciativas nas periferias que se reflitam no mercado. Isso tem que ser feito de uma maneira proativa, valorizando a singularidade de cada pessoa”, sugere.
Para a quarta edição do Festival Sesc de Música de Câmara, os curadores escolheram grupos, solistas e vozes diversas, que apresentam trabalhos contundentes e arrojados na cena brasileira e internacional. “O evento valoriza muito isso, e há todo um movimento para integração de jovens e para termos uma visão mais inclusiva na música clássica. Também levamos em conta, na hora de compor a programação, grupos paulistas e brasileiros, em geral, que já têm uma trajetória consolidada, como Quarteto Carlos Gomes, São Paulo Chamber Soloists e Ilumina”, enumera Budu.
PONTE AÉREA
Representante da nova geração de musicistas de câmara, a violonista clássica Gabriele Leite, uma mulher negra de 24 anos, vai subir ao palco do festival por quatro vezes, entre 16 e 19 de junho, no Sesc Jundiaí, Sorocaba, Consolação e Guarulhos. Ela vai estrear – e solar – uma obra de João Luiz Rezende Lopes para violão e cordas, ao lado da orquestra São Paulo Chamber Soloists. “Será a minha estreia no festival, que é incrível e importante para a música de câmara no Brasil. Não dá para mensurar o tamanho da minha felicidade! Estou animada porque vou tocar com músicos da Osesp [Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo] e do Theatro Municipal. Além disso, o João [compositor] é meu ídolo e referência desde pequena”, conta.
Natural de Cerquilho (SP), Gabriele conheceu João Luiz em um festival em 2015. No início deste ano, quando se reencontraram para conversar sobre a participação da violonista no Festival Sesc de Música de Câmara, o compositor pediu para que ela falasse tudo o que admirava em termos de compositores e ritmos brasileiros. “Um mês depois, ele começou a escrever a peça e disse que teria a minha cara. E realmente essa obra tem muito da minha personalidade, num ritmo vigoroso que reúne tradições afro-brasileiras”, comenta Gabriele, que atualmente forma um duo de violões com o gaúcho Eduardo Gutterres.
Desde o início da carreira, a violonista já ganhou vários concursos no Brasil e na Alemanha, integrou por cinco anos o Quarteto Abayomi e, desde 2021, vive em Nova York, onde acaba de concluir um mestrado em violão clássico pela Manhattan School of Music. Mantida por um programa de bolsas de estudo da instituição Cultura Artística, Gabriele diz que sempre gostou muito de música e ouvia, com os pais, de Pavarotti a James Brown.
Em solo brasileiro desde o fim de maio, a violonista ficará no país por cerca de dois meses, apresentando-se em concertos em São Paulo, Belo Horizonte, Salvador e Porto Alegre. No retorno a Nova York, vai participar de um recital em um evento da Organização das Nações Unidas (ONU), cujo repertório inclui composições de brasileiros como Radamés Gnattali (1906-1988), Marlos Nobre, Marco Pereira e Paulo Bellinati. Em agosto, Gabriele inicia seu doutorado na Stony Brook University, em Long Island, onde será professora assistente de João Luiz.
“Nos Estados Unidos, você já vê mais músicos clássicos pretos, ainda que haja divisão. Por muito tempo, esse foi um privilégio das pessoas brancas, dos homens. Hoje já tenho muitas colegas mulheres, e a tendência é a gente cada vez mais ocupar esses espaços. Se as políticas públicas continuarem oferecendo incentivos, daqui a uns 20 anos deve ser diferente, a cara vai ser outra, vamos ter mais diversidade. Uma mulher negra não vai ser rara, seremos uma comunidade inteira”, prevê Gabriele. Para ela, também falta democratizar o acesso da plateia, e não apenas dos instrumentistas.
Realizado pelo Sesc São Paulo desde 2014, a cada dois anos, o Festival Sesc de Música de Câmara teve a programação de 2020 cancelada por conta da pandemia de Covid-19. Agora, em sua quarta edição, o evento acontece presencialmente entre 9 e 26 de junho em quatro unidades do estado (Consolação, Guarulhos, Jundiaí e Sorocaba) e em outros espaços da capital, da Grande São Paulo (Mogi das Cruzes) e do interior (Ribeirão Preto). Nesse período, serão apresentados 34 concertos e realizadas ações educativas (mediações, ciclos de debates, vivências e aulas abertas), com a presença de cinco conjuntos brasileiros, um internacional (da Dinamarca) e dois mistos. Entre os grupos, há trios instrumentais, quartetos de cordas e de violões, e até coro e orquestra.
Para o diretor do Sesc São Paulo, Danilo Santos de Miranda, o 4º Festival Sesc de Música de Câmara reafirma a relevância dos processos colaborativos entre instrumentistas e compositores nacionais e estrangeiros, trazendo uma diversidade de repertórios, formação e origem dos grupos. “A dimensão educativa dessa iniciativa avigora-se com os debates, vivências e atividades formativas para distintos públicos, incluindo um concerto concebido para crianças, buscando o desenvolvimento de uma escuta mais qualificada. Outro aspecto é a ampliação do fomento de obras nacionais, essencial para o estímulo à criação da música de concerto contemporânea brasileira”. Com essa realização, o Sesc reforça o seu compromisso com a democratização cultural – processo que orienta suas ações institucionais.
De acordo com Priscila Rahal, assistente da Gerência de Ação Cultural (GEAC) do Sesc São Paulo, “a música de concerto tem sido contemplada na programação da instituição, nas diversas unidades, e a realização de um festival, para além de reforçar essa prática, apresenta-se como um momento oportuno para aprofundamento da pesquisa, ampliação do repertório e, sobretudo, reflexão acerca dos modos de pensar, criar e executar música erudita no Brasil e no mundo”.
Um dos principais destaques do festival será a execução da Missa de Santa Cecília, do padre José Maurício Nunes Garcia (1767-1830), considerado o mais importante compositor brasileiro de sua época, na Catedral de Sant’Ana (Mogi das Cruzes), dia 23 de junho, às 19h; na Catedral Evangélica de São Paulo, dia 24/06, às 19h30; no Sesc Guarulhos, dia 25/06, às 19h, e no Theatro Pedro II (Ribeirão Preto), dia 26/06, às 16h. As apresentações nas duas igrejas serão gratuitas.
Escrita em 1826 para cinco solistas vocais, coro e orquestra, a obra será regida pelo paulista radicado na Europa Luiz de Godoy, marcando o bicentenário da Independência do Brasil. Godoy vai comandar a Orquestra Sinfônica da Universidade de São Paulo (OSUSP), integrantes da Ocupação Cultural Jeholu e os Meninos Cantores de Hamburgo, coro do qual é regente titular e que vem da Alemanha especialmente para o evento.
Veja outros destaques da programação do 4º Festival Sesc de Música de Câmara em: www.sescsp.org.br/musicadecamara.
(Por Luna D’Alama)
A EDIÇÃO DE JUNHO/22 DA REVISTA E ESTÁ NO AR!
Nesta edição, celebramos os 30 anos da ECO-92, Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento que, no começo da década de 1990, propôs uma série de debates e compromissos dos quase 180 países participantes com a sustentabilidade e a preservação do meio ambiente. Nesta reportagem, propomos um resgate histórico sobre os marcos e conquistas ambientais no Brasil e no mundo e revelamos quais os ecos da ECO-92 três décadas depois de sua realização.
Além disso, a Revista E de junho traz outros destaques: uma reportagem que destaca a diversidade de estilos, formações e técnicas na produção contemporânea de música de câmara; uma entrevista sobre parentalidade com a psicanalista Vera Iaconelli; um depoimento de Zezé Motta sobre os mais de 50 anos de carreira; um passeio visual pelas obras da exposição Xilograffiti, em cartaz no Sesc Consolação; um perfil de Lygia Fagundes Telles, um dos maiores nomes da literatura brasileira; um encontro com Marcio Atalla, que defende a adoção de uma vida mais ativa para o bem-estar a e saúde a longo prazo; um roteiro por 5 espaços que celebram a cultura japonesa em SP; o conto inédito “Careiro”, assinado pela escritora Paulliny Tort; e dois artigos que celebram o legado do sociólogo e crítico literário Antonio Candido.
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