SUCUPIRA É AQUI? | Depoimento do ator e diretor Cassio Scapin

01/10/2022

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Leia a edição de outubro/22 da Revista E na íntegra

PREMIADO ATOR E DIRETOR PROVOCA REFLEXÕES SOBRE O ATUAL CENÁRIO POLÍTICO BRASILEIRO NA VERSÃO MUSICADA DA PEÇA O BEM-AMADO, DE DIAS GOMES 

Em 1963, um ano depois do dramaturgo e romancista Dias Gomes (1922-1999) ter escrito O Bem-Amado, nascia Cassio Scapin. Quis o destino que, mais de cinco décadas depois, fosse a vez do ator e diretor paulistano encarnar sua versão do protagonista Odorico Paraguaçu, político tão carismático quanto corrupto, imortalizado na televisão brasileira por Paulo Gracindo (1911-1995). Sob direção de Ricardo Grasson, letra e música de Zeca Baleiro e Newton Moreno, o espetáculo O Bem-Amado Musicado, que estreou no Sesc Santana em agosto, atesta a atualidade da obra do autor, que neste ano celebraria seu centenário [leia Perfil de Dias Gomes nesta edição]. Acompanhado pelas atrizes Rebeca Jamir, Kátia Daher e Luciana Ramanzini (que interpretam as três irmãs Cajazeiras), e pelos atores Guilherme Sant’Anna, Ando Camargo, Eduardo Semerjian e Marco França (que também assina a direção musical), Cassio embola o público com seu “odoriquês” e, pelo viés da comédia, instiga reflexões sobre a necropolítica na cidade fictícia de Sucupira. Neste Depoimento, o ator, reconhecido no teatro e na tevê (Castelo Rá-Tim-Bum, 1994-97), fala sobre a montagem de O Bem-Amado, o despertar dos musicais brasileiros e a força da comédia.

SIMBORA!

Durante a pandemia, o Ricardo [Grasson, diretor e produtor de teatro] intermediou alguns dos meus espetáculos, como Eu não dava praquilo, que fiz pelo #EmCasaComSesc, gravado na minha casa. A gente montou um teatro, aliás, dois aqui. Eu brincava que era a sala Miriam Muniz e a sala Marília Pêra, porque eram dois cenários diferentes e eu queria fazer teatro. Então, tinha cenário, luz…tinha tudo. E o Ricardo fez essas pontes com o Sesc São Paulo. Até que, numa live em que falei sobre os desejos da vida, eu disse que tinha muita vontade, mais do que nunca, de fazer O Bem-Amado, de fazer o Odorico Paraguaçu, porque eu achava que era um assunto absolutamente pertinente pelo momento que vivíamos, além de ser um projeto de longa data. Também não havia na minha época um aluno de teatro que não passasse pela dramaturgia brasileira sem estudar Dias Gomes, Oduvaldo Vianna Filho (1936-1974), Nelson Rodrigues (1912-1980), ou seja, os grandes autores nacionais. E o Ricardo estava assistindo a essa live. Assim que terminou, ele me perguntou: “Você quer fazer O Bem-Amado?”. E eu respondi: “Simbora”.  

LEVANTE MUSICAL

Acho que o crescente número de musicais brasileiros não é uma novidade. Isto já é uma característica do teatro brasileiro, uma característica do Teatro de Revista no Brasil, do teatro português que vem para o Brasil. Eu acho que esse é um momento de recuperação. E o musical que o brasileiro fazia era diferente do musical feito nos Estados Unidos. A gente sempre teve esse aspecto mais jocoso de fazer um musical. Muito mais malandro, no bom sentido. Muito mais debochado e bem-humorado para fazer um musical. Então, eu acredito que não está se inventando um musical brasileiro. Na verdade, estamos recuperando o que é nosso. Um dos grandes sucessos da história do teatro nacional é O Mambembe, de Artur Azevedo, feito pela Fernanda Montenegro em 1959. Então, essa é uma característica que nos pertence e que a gente está resgatando. Meu grande problema é com os musicais internacionais, o quanto eles chegam engessados para a gente. Eu acho bacana fazer qualquer musical, qualquer espécie de teatro, mas com liberdade. 

ACHO QUE O HUMOR TRAZ ESSA POSSIBILIDADE DE 

FAZER AS PESSOAS ENXERGAREM AS COISAS GRAVES

ATUAR E (EN)CANTAR

O primeiro [prêmio] Shell que eu ganhei foi com o musical Memórias Póstumas de Brás Cubas (1987), que era um solo musical. Quando fiz Lampião e Lancelote (2013), foi com Zeca Baleiro [que assina letra e música, junto a Newton Moreno, em O Bem-Amado Musicado], depois fiz Além do ar (2019), sobre Santos Dumont. Todos são musicais brasileiros. Então, eu não sou um ator de musical, eu sou um ator que canta. Precisou? Eu canto. Posso não encantar, mas canto. Me divirto e divirto a plateia. Essa é, um pouco, a função do ator: eu tenho que convencer o público de que eu canto. Eu adoro e acho muito bom poder trafegar em todos os lugares. Fiz Admirável Nino Novo (2017), que também era um solo musical com o personagem Nino [do Castelo Rá-Tim-Bum], no qual Marco França também trabalhou na criação das músicas. Então, tenho uma experiência com esse universo. Menor que alguns colegas, claro, que inclusive estão no elenco de O Bem-Amado, como Marco, Rebeca, Kátia… Pessoas que já têm mais experiência nessa área.

No espetáculo Admirável Nino Novo, 2017. Foto: Priscila Prade

POLITICAMENTE INCORRETO

Quando eu era criança, assisti à novela O Bem-Amado. Então, eu tenho uma lembrança de resíduo. Inclusive, ganhei a novela inteira em DVD, mas falei: “Eu não vou ver”. Também sabia que tinha a peça do Nanini online e não vi. A minha preocupação com o Odorico foi fazer uma versão que é quase uma máscara. Foi aglutinar, pegar todas as informações de déspotas, de governantes “simpáticos”, de pessoas que angariam a simpatia do público para benefício próprio, e potencializar isso. Às vezes, eu brinco que Odorico Paraguaçu é o Ricardo III [personagem-título da peça do inglês William Shakespeare, escrita no final do século 16, que passa pela ascensão e queda do poder]. Então, ele é uma máscara. E como tem esta coisa do cordel em O Bem-Amado, essa brincadeira da farsa, a gente pode exagerar. A gente pode partir para um lugar que é quase da desumanização desse sujeito. É entender isso como uma deformação de caráter mesmo. Uma deformação de caráter dessa relação com o poder. Da forma como governantes passam a torcer as verdades em função de benefícios próprios, mesmo que seja apenas pela vaidade. 

APELO À RAZÃO

Abriu-se uma discussão bastante importante sobre a função do humor, sobre os humoristas, os comediantes. Por exemplo, esta peça tem inúmeras questões politicamente incorretas no personagem. Mas, elas são entendidas e aceitas porque estão dentro de um contexto. O contexto no qual é entregue a peça faz com que as pessoas entendam que o Odorico é absolutamente politicamente incorreto, mas ele tem uma punição no final. Ele não fica impune. Eu acho que o humor traz essa possibilidade de fazer as pessoas enxergarem as coisas graves, mas de maneira que entendam num nível racional, e não figadal. A indignação é feita por um caminho racional, portanto mais passiva de uma discussão clara e racional das questões do que se ela fosse entendida com o fígado, ou seja, do que se ela fosse entendida pela paixão. E a comédia ajuda nisso porque você precisa ser inteligente para rir. Então, Odorico é um personagem muito bom para se fazer isso por ser um personagem carismático para o público, mas, ao mesmo tempo, um carismático sem escrúpulos. Aliás, o teor de O Bem-Amado seria muito pesado se fosse feito como um teatro realista. 

A EDIÇÃO DE OUTUBRO/22 DA REVISTA E ESTÁ NO AR!

Neste mês, celebramos as ações solidárias organizadas pela sociedade civil para o combate à fome no país. Na reportagem “Alimentar a mudança”, divulgamos dados alarmantes sobre o cenário de insegurança alimentar no Brasil e indicamos iniciativas e projetos transformadores para enfrentar essa situação, como o Organicamente Rango, a Gastronomia Periférica e o Experimenta!

Além disso, a Revista E de outubro traz outros destaques: uma reportagem que destaca a força do jazz enquanto música afrodiaspórica, diversa e combativa; uma entrevista sobre música, literatura e sociedade com Adriana Calcanhotto; um depoimento de Cassio Scapin sobre a força da comédia e o despertar dos musicais brasileiros; um passeio visual pelas obras da exposição Desvairar 22, em cartaz no Sesc Pinheiros; um perfil de Dias Gomes (1922-1999), nome primordial da dramaturgia brasileira; um encontro com o coordenador da Agência Lupa Chico Marés, que fala sobre checagem de informações; um roteiro por 6 espaços que propõem atividades artísticas para aguçar a sensibilidade das crianças, em outubro; poemas inéditos do escritor Paulo Scott; e dois artigos que destacam a importância da educação midiática para o combate à desinformação.

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