Teatro, sujeito coletivo

16/02/2022

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DRAMATURGO E DIRETOR FERNANDO YAMAMOTO FALA DE SEU TRABALHO À FRENTE DA CIA. CLOWNS DE SHAKESPEARE (RN), DA REINVENÇÃO DO GRUPO NA PANDEMIA E DA CENA IBERO-AMERICANA 

Um dos fundadores da companhia Clowns de Shakespeare, criada (e com sede) em Natal, onde atua há quase 30 anos, o paulistano Fernando Yamamoto se reveza nas funções de dramaturgo, diretor, pesquisador, professor, gestor e tradutor. Seus estudos transitam por universos como o teatro popular, a comicidade, a rua e as experiências latino-americanas. Entre os diversos prêmios que acumula ao longo de sua carreira, destaca-se o APCA (Associação Paulista dos Críticos de Arte) pela direção de Fábulas (2007). Também já ministrou mais de cem oficinas e laboratórios em diferentes estados do Brasil e em países vizinhos como Peru, Colômbia, Bolívia, Uruguai e Equador. “Sou arquiteto de formação, mas nunca projetei nem uma casinha de cachorro”, brinca. O interesse pelas artes cênicas começou ainda na infância, quando voltava à capital paulista para passar férias na casa da avó e ia a uma livraria para comprar livros e mais livros sobre teatro. “Eu estava no último ano da escola, em 1992, quando um professor de literatura me convidou, por telefone, para montarmos a primeira peça. Respondi: ‘Ué, vamos!’ Fui o mais despretensioso possível, sem ter ideia de que aquilo mudaria a minha vida toda”, recorda. A companhia foi batizada em homenagem a um poema de Manuel Bandeira (1886-1968) chamado Poética, que fala sobre os clowns de Shakespeare – mas, àquela altura, a trupe ainda não tinha a menor ideia do que era um clown, muito menos quem havia sido Shakespeare (1564-1616). Neste Encontros, Fernando Yamamoto fala sobre a criação e obras do Clowns de Shakespeare, desafios na pandemia e as repercussões da Ocupação Mirada 2021, realizada pelo Sesc São Paulo em novembro do ano passado na cidade de Santos, sempre com uma lupa voltada para a criação ibero-americana contemporânea.

SHAKESPEARE REVISITADO

Shakespeare é, possivelmente, o maior dramaturgo da História, talvez o maior escritor. Se não “o”, um dos. Como o crítico Harold Bloom diz no livro Shakespeare: A Invenção do Humano (1998), ele realmente aponta questões que garantem uma universalidade para sempre. Shakespeare dialoga com qualquer ser humano de qualquer tempo ou lugar. Mas, para fazer sentido trabalhá-lo, a gente precisava se apropriar dele. Achamos que, se estivesse vivo, ele ficaria muito feliz com a forma como o relemos. E ficaria muito triste ao ver montagens que tentassem adotar uma postura elisabetana [teatro feito durante o reinado de Elisabeth I da Inglaterra, de 1558 a 1603, inspirado nos circos da época, com improvisos ao ar livre] com que o teatro dele que é feito no Brasil, no século 21. Falaria: “Qual o sentido de fazerem isso?”. Ele era um homem que escrevia para as pessoas do seu tempo até pela urgência econômica – era um homem de teatro que vivia disso e precisava fazer trabalhos, disputando público, concorrendo com “rinhas de cachorros contra ursos”. Então, tinha que ser um troço com pegada popular e não essa coisa distante. E [o autor] é muito mais importante neste momento em que estamos na América Latina, de entendimento da necessidade de uma atitude contracolonial. A gente precisa rever isso: pegar Shakespeare e antropofagizá-lo, transformá-lo, comê-lo, vomitá-lo. Estabelecer uma outra relação com ele, sem abrir mão da potência poética, da força, mas dialogando, de fato.

CENA POTIGUAR

Pensar em fazer teatro profissional em Natal, viver de teatro, era uma coisa impossível. Era muito mais uma brincadeira, uma experiência casual. Só que, ao longo do tempo, isso foi mudando e não parei mais. Me identifiquei com o teatro, me conectei e me encontrei nesse lugar. Sobre se estruturar enquanto grupo, na maior parte do Brasil profundo, esta é uma questão de sobrevivência, a única possibilidade de trabalhar. Há quase 30 anos, a capital do Rio Grande do Norte era uma cidade marginal em termos de artes cênicas, mesmo no contexto nordestino. A gente não tinha acesso à informação nem à formação. No grupo tinha: bióloga, físico, publicitário, jornalista… De tudo. Por várias questões, só não tinha gente que havia feito teatro. Era mais um hobby. Com o tempo, a formação foi acontecendo pelos encontros. Íamos a tudo que era festival. Os grupos reconhecidos (Galpão, Parlapatões, Folias D’Arte), quando vinham para o Nordeste, iam para Recife, às vezes João Pessoa e pulavam para Fortaleza. A gente estava sempre “debaixo da ponte”. Tinha que fazer bate-volta de carro para ver as companhias. Acabava o espetáculo, íamos conversar com o pessoal, esperar um convite para jantar. Uma vez, fomos [como espectadores] ao Festival Internacional de Teatro de Rio Preto (SP) e um jornalista da Folha de S.Paulo publicou uma notinha sobre a gente, porque ele não acreditou que a gente tinha saído de Natal só para ver as peças. Depois de um ano, a gente entrou na programação desse mesmo festival, com Muito Barulho Por Quase Nada – nosso primeiro espetáculo que realmente circulou. Dois, três meses depois, a gente já estava fazendo uma temporada no Teatro Anchieta (no Sesc Consolação), naquele templo sagrado.

PROCESSO COLABORATIVO

A horizontalidade é um princípio da nossa relação como grupo. A gente sempre faz parcerias, inclusive com diretores e diretoras, porque esse é o nosso lugar de oxigenação, de não ficar sempre no mesmo lugar. Essa proposta tem a ver com a formação do grupo, que não é clássica. Todo mundo começou do zero junto, com a mesma idade e quase nenhuma experiência em teatro. Em muitos momentos, principalmente lá no início, me senti desautorizado. Mas, algo que para mim era uma coisa difícil de aceitar, hoje é absolutamente compreensível. Por mais que a gente nunca tenha trabalhado com uma hierarquização das funções, existe uma coisa do diretor como a pessoa que dá a palavra final, que tem um olhar de fora. Então, acho que de alguma forma a gente acabou aprendendo um pouco na marra. Eu sou praticante de aikido, e em qualquer arte marcial você começa aprendendo a cair. A gente vai aprendendo pelas dores. Acho que assim encontramos uma maneira coletiva de dialogar com as pessoas do grupo, que se formaram juntas como artistas e que ocupam diferentes lugares na engenharia da criação, sem que isso signifique “um saber mais que o outro”.

CONTEXTO LATINO-AMERICANO

A forma como o teatro latino-americano se estrutura é muito particular. Todos os pesquisadores relatam a aproximação dos grupos brasileiros com o Odin [Odin Teatret, fundado em 1964 em Oslo, na Noruega, pelo diretor italiano, criador da antropologia teatral] Eugenio Barba, como um momento de mudança desse paradigma, nas estruturas de formação dos coletivos. A gente tem o Théâtre du Soleil como uma referência também. Nossa estrutura é sempre muito eurocêntrica – sem desmerecê-la, porque há coletivos maravilhosos –, mas essa referência tem uma conformação muito distinta da nossa. Os grupos [latino-americanos] começam a surgir das ditaduras em todo o continente, entre as décadas de 1960 e 1980. Isso acabou sendo um fator de conformação a respeito de como esses grupos trabalham. La Candelaria e o Teatro Experimental de Cali [ambos da Colômbia], por exemplo, são referenciais no aspecto dessa estrutura de criação coletiva. Acho que, em geral, a forma de coletivizar nossos processos na América Latina passou um pouco, num primeiro momento, por uma resposta política.

Feita para o formato online, obra cênica CLÃ_DESTIN@ estreou em julho de 2020. Foto: Rafael Telles
 

NOVOS FORMATOS

Quando a gente ia começar a criar um novo trabalho, a partir de uma experiência na Colômbia, veio a pandemia. Seria um trabalho de rua, com itinerância, em que os atores cantam, tocam, correm, se deslocam… Como é que a gente faria isso pela internet? Desde o começo da pandemia, a gente decidiu respeitar o isolamento à risca. A gente parou e achou, como todo mundo, que isso iria durar 15 dias, dois meses no máximo. Só que o tempo foi passando, e ficou difícil de seguir. O Clowns de Shakespeare conseguiu encontrar uma resposta: mesmo que não tenha sido planejada, pensada, fomos reconfigurando nossa cartografia no dia a dia, recalculando a rota. Nesse meio-tempo, algumas experiências de criações online começaram a surgir e nos interessaram. A partir disso, a gente começou a experimentar a criação de um trabalho específico para a relação remota e conseguiu encontrar um caminho muito próprio nessa pesquisa. O eixo principal de tudo o que a gente fez durante a pandemia foi pensar no que pode ser definido como essencial ao teatro, encontrar equivalências para a experiência remota. “O que tinha no teatro que a gente gostava de fazer e assistir antes?” A resposta é muito ampla, mas seria um teatro capaz de mobilizar o espectador, de mantê-lo focado. Que não seja uma produção “de cortar legumes”, ou seja, aquele teatro que, mesmo tendo atores incríveis, se matando do outro lado para fazer ao vivo, não mobiliza. Num bom teatro, seja de sala ou de rua, eu entro ali na frente e nada me atrapalha. Se estou envolvido numa obra e começa a tocar o celular, eu desligo [o aparelho]. Então, a gente começou a buscar uma relação próxima a essa, para emular essa experiência com o público online.

OUTRA LINGUAGEM

Tem um trabalho do Lázaro Gabino, diretor do grupo mexicano Lagartijas Tiradas al Sol, que faz uma provocação maravilhosa: Cada vez que alguém diz “isso não é teatro”, uma estrela se apaga. Paradoxalmente, essa é uma obra muito audiovisual, pouco teatral. E a provocação é exatamente essa. Ele parte justamente de pensar o que é o teatro. Como se essa fosse uma questão fácil de ser resolvida. O teatro online não tem a obrigação de ser sempre como o presencial, não vai substituí-lo. Eu passei muito tempo nessa discussão lá no começo da pandemia, e num primeiro momento eu o negava radicalmente, com muito medo de que aquilo acabasse acomodando o olhar do público, dos programadores. Isso agora não é teatro como a gente conhecia, mas também não é audiovisual como a gente conhece. Se fizermos uma análise muito estrita, vamos ver que não é nenhuma das duas coisas, mas uma linguagem que a gente ainda está desenvolvendo. Nosso grupo, por exemplo, só criou espetáculos ao vivo, e houve alguns festivais em que não pudemos nos inscrever porque só aceitavam trabalhos gravados. Então, aquela pedra fundamental do teatro – que diz que essa é uma arte efêmera –, até isso está caindo por terra. Se é teatro ou não, os pesquisadores vão definir daqui a um, cinco, dez anos.

Frame do espetáculo L.A.A.A.T.I.N.A, de 2021, voltado para crianças. Divulgação

QUATRO OBRAS RECENTES

Durante a pandemia, a gente desenvolveu quatro trabalhos: CLÃ_DESTIN@: uma viagem cênico-cibernética, que estreou em julho de 2020; L.A.A.A.T.I.N.A. – Legião de Aventureiras, Aventureires e Aventureiros Tenazes e Incansáveis pelas Narrativas ao Avesso, voltado principalmente para as crianças [que estreou em julho de 2021]; e Acatacara: uma peça ao avesso [lançada em agosto de 2021], que tem o Telegram [aplicativo de mensagens instantâneas] como base, com um grupo de 120 pessoas que se inscreveram – seis dias e seis noites numa experiência de total compartilhamento com o público para construção de um país latino-americano fictício. No caso de Acatacara, a gente construiu uma Constituição, uma bandeira, um hino, e expulsou os colonizadores. No CLÃ_DESTIN@, o público era chamado de viajante; no L.A.A.A.T.I.N.A., eram aventureiros(as/es); e em Acatacara, o próprio público acabou criando um neologismo chamado cidadanhes, que tanto está no gênero neutro quanto é latino-americano e brasileiro. No fim de 2021, a gente também fez uma experiência híbrida chamada As Teias Abertas da América Latina, junto ao Teatro del Embuste [Colômbia], com a participação dos grupos Teatro de Los Andes [Bolívia], Malayerba [Equador] e Yuyachkani [Peru]. São quatro atos em que cada um discute questões diferentes [escravidão, heróis e heroínas nacionais, povos originários e o lugar da mulher na história e no continente latino-americanos].

MIRADA POTENTE 

Fizemos um laboratório durante quatro dias, com pessoas de dez cidades e quatro países. A gente conseguiu criar junto, trocar, dialogar, estabelecer um grau de afeto (de carinho e também no sentido de afetar mesmo), de como um trabalho pode ressoar no outro. Foi um lugar muito potente de encontros. Um pequeno laboratório para essas relações, inclusive. E potencializou muito a experiência ter acontecido dentro do Mirada, ganhou outra força. É um dos principais festivais do Brasil e, quando a gente está dentro desse contexto, abre com outro espectro de possibilidades de diálogo, para outros lugares. A própria ideia da “ocupação” já tem um pouco disso, de como as ações podem gerar desdobramentos. Várias das dez intervenções que contribuímos na criação eram continuidade de intervenções, e outras começaram ali e vão continuar. Acho fundamental pensar nessas ações que ultrapassem a exibição de espetáculos, e talvez essa seja a célula-base do que a gente faz. Pensar nessa mescla de ações é superimportante.  

PROJETAR FUTUROS

Nosso maior desafio, olhando para a frente, é saber quando é que a gente vai conseguir estabelecer essa relação próxima com o público que a gente já teve nas experiências online – quebrando a hierarquia do artista como esse ser supremo, que está num lugar especial e não se mistura. Temos um projeto para 2022 que é uma espécie de desmontagem. Queremos fazer um apanhado da nossa produção, da produção teatral no Brasil como um todo e do que aconteceu no país e no mundo neste tempo, para apontar caminhos para o pós-pandemia. A gente está direcionando a energia muito para isso agora.  

Cena de As Teias Abertas da América Latina, experiência híbrida do Clowns de Shakespeare. Foto: Rafael Telles

Assista aos vídeos (em 10 partes) deste Encontros com Fernando Yamamoto:

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