O agente infeccioso, que será combatido com a vacina quadrivalente / Foto: Phototare/Alamy
Por: MILU LEITE
O papilomavírus humano, também conhecido como HPV, é um dos maiores vilões da saúde de homens e mulheres sexualmente ativos, tão perverso que a medicina vem se armando com unhas e dentes contra ele. A partir de abril de 2014, esse micro-organismo vai ter que lidar com um inimigo poderoso: uma vacina quadrivalente, que estará disponível na rede pública como parte de uma campanha nacional dirigida inicialmente a meninas de 10 e 11 anos. O programa prevê a aplicação de três doses por pessoa, e a meta é alcançar 80% dos 3,3 milhões de meninas nessa faixa etária em todo o país. A comercialização da vacina, contudo, está regulamentada no Brasil desde 2006, e ainda que ela seja indicada em bula para pessoas com idade inferior a 30 anos, pode ser usada por todos. Embora se saiba que a sua eficácia diminui com aumento da idade, a medicação é uma importante aliada na luta contra o câncer ligado ao HPV.
O anúncio do programa, aguardado ansiosamente pelos médicos há pelo menos cinco anos, foi feito em julho pelo Ministério da Saúde, que prevê gastos da ordem de R$ 360,7 milhões na compra de 12 milhões de doses do medicamento. A vacina quadrivalente é usada na prevenção de quatro tipos de HPV (6, 11, 16 e 18). Os vírus dos tipos 16 e 18 estão presentes em 70% dos casos de câncer, principalmente os que atingem o colo do útero, a garganta, a boca, o ânus e o pênis. De acordo com especialistas, a eficácia da vacina está comprovada apenas no caso das pessoas que nunca tiveram contato com essas modalidades de vírus. Por essa razão, a escolha dos beneficiários é ainda restrita a meninas incluídas na faixa etária estipulada pelo governo. Segundo pesquisadores, os excelentes resultados da vacina podem ser atestados graças a cinco anos de acompanhamento médico a cerca de 35 mil mulheres de diversos continentes.
“O câncer de colo do útero é um dos poucos com possibilidades de prevenção”, diz o médico Garibalde Mortoza Junior, presidente da Associação Brasileira de Patologia do Trato Genital Inferior e Colposcopia (ABPTGIC). “Hoje, uma das principais ferramentas para prevenir é a vacinação.” Responsável pela página do Facebook “Mulheres Semeiam Vida”, uma campanha realizada pela associação, com o apoio da organização não governamental Instituto Brasileiro de Florestas e da Casa de Vacinas do laboratório GSK, Mortoza conta que uma pesquisa encomendada ao Ibope revelou que apenas 15% das mulheres conhecem a vacina contra o HPV como forma de prevenir o câncer. O médico Mortoza, que mora em Belo Horizonte, cita o exemplo do programa desenvolvido no Reino Unido como um dos mais bem-sucedidos contra esse tipo de câncer. “Após a instituição da campanha, a incidência ali caiu de 16 para três casos em cada 100 mil mulheres”, diz.
O desconhecimento sobre a vacina não é, contudo, o único ponto a lastimar. Segundo a mesma pesquisa, 66% das mulheres não relacionam a incidência do HPV com o câncer, embora 83% delas já tenham ouvido falar do vírus. O estudo ainda mostrou que 31% das brasileiras nunca fizeram o exame ginecológico Papanicolau preventivo, que deve ser realizado anualmente e tem a capacidade de diagnosticar o câncer de colo uterino. “Vivemos num país muito grande, com acentuadas diferenças culturais e econômicas entre as diversas regiões”, afirma Julio de Carvalho, professor da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo. Carvalho, que também coordena o Núcleo de Programas Estratégicos da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo, afirma que, no Brasil, o Papanicolau alcança apenas 20% da população feminina. “Portanto, permitir que um maior número de mulheres tenha acesso ao exame pode ajudar a diminuir de forma substancial os casos de câncer de colo uterino”, diz, complementando com a informação de que “na Finlândia 80% da população feminina faz o exame preventivo, conferindo ao país um dos menores índices desse tipo de doença”.
Ameaça séria
Para ter uma ideia da gravidade do problema no Brasil, basta citar que a campanha de vacinação que será iniciada só no ano que vem é a primeira medida específica de combate ao HPV com abrangência nacional. Ou seja, até hoje nunca existiu nenhum programa que colocasse o vírus no centro das atenções, apesar de se saber há muito tempo que sua incidência está relacionada a uma doença grave como o câncer.
Tendo isso em vista, a decisão de fazer uma campanha específica de esclarecimento em larga escala e de levar adiante um programa planejado de vacinação deve ser aplaudida, ainda que, comparativamente a campanhas realizadas em nações como a Austrália, por exemplo, a do Brasil pareça tímida. “Todos os países que disponibilizaram a vacina no setor público têm observado uma rápida e significativa redução das verrugas genitais, com o registro de uma queda de 25% no primeiro ano e chegando a quase 100% em cinco anos”, revela o médico Edison Natal Fedrizzi, professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Os dados mais consistentes foram vistos na Austrália, porque foi o país pioneiro na vacinação em meninas e mulheres com idades entre 12 e 26 anos. Segundo Fedrizzi, o resultado foi tão bom que o governo daquele país vai dar início a uma campanha de vacinação focada nos meninos. “O ideal é que no Brasil a vacina fosse disponibilizada para todas as idades”, afirma.
O programa brasileiro, dividido em três fases, com aplicações feitas em intervalos de dois e seis meses, pretende reduzir o número de doses à metade – 6 milhões – já no primeiro ano depois da imunização inicial. Mas para obter tamanho sucesso, o governo terá de transpor alguns obstáculos. “O grande desafio será vacinar o maior número possível de meninas pré-adolescentes, que toleram muito pouco o uso de medicação injetável”, avalia Fedrizzi. Outra dificuldade está relacionada às dimensões continentais do país, um aspecto que pode se revelar um grande complicador. Contudo, o sucesso de outros programas de vacinação praticados nas últimas décadas faz crer que este também trilhará o mesmo caminho.
O HPV é uma ameaça séria, e não apenas no Brasil. De acordo com dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), uma em cada dez pessoas está infectada por um dos 200 tipos do vírus (o equivalente a 630 milhões de homens e mulheres). No Brasil, o número de infectados atinge os 10 milhões, e a cada ano surgem 700 mil novos casos, o que permite enquadrar a doença como epidêmica. Não bastasse isso, no mundo todo existem, atualmente, mais de 100 milhões de portadores do HPV 16 ou 18. Os dados constam de estudo realizado por Fedrizzi, que também responde pela chefia do Centro de Pesquisa Clínica Projeto HPV do Hospital da UFSC e integra o Comitê Consultivo em Práticas de Imunizações da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo).
“A falta de informação, de modo geral, diz respeito a praticamente todas as modalidades de doenças sexualmente transmissíveis. O esclarecimento deveria começar em casa, passar pela escola e incluir iniciativas do governo, que não tem utilizado a mídia para alertar a população”, analisa Fedrizzi. Ele comenta que as medidas oficiais se restringem, até o momento, a alguns folhetos informativos e distribuição de preservativos àqueles que procuram informações nos postos de saúde. É pouco. E também não é muito eficaz, uma vez que só recebe esse tipo de material quem bate às portas dos postos de atendimento.
Quem transmite?
A contaminação por HPV é em grande parte sexual e acontece por meio de contato direto com a mucosa ou a pele. O grau de contágio é alto, podendo chegar a 65% após o contato com uma pessoa infectada. Apenas 5% da contaminação pode se dar por meio de toalhas, roupas e objetos e somente se a secreção com o vírus entrar em contato com pele ou mucosa lesionadas. “Existem 32 tipos de HPV relacionados à infecção genital tanto no homem quanto na mulher, sendo alguns deles mais oncogênicos e outros menos”, explica Julio de Carvalho.
A infecção genital por HPV é considerada a mais frequente dentre as doenças sexualmente transmissíveis. Ela acomete, principalmente, jovens do sexo feminino com vida sexual ativa a partir dos 20 anos de idade, havendo um declínio com a maturidade. O câncer de colo do útero, por sua vez, é comum em mulheres com mais de 40 anos, porque, de acordo com especialistas, é o tempo necessário para transformar o simples contágio pelo vírus em algo maligno. Segundo estudos, ao completar 50 anos, pelo menos 80% das mulheres já se infectaram com o HPV.
Atualmente, segundo dados divulgados pelo Instituto Nacional de Câncer (Inca), 25% das brasileiras carregam consigo algum tipo de HPV. É triste pensar que uma parte delas irá desenvolver câncer de colo uterino, o segundo a matar mais mulheres no mundo (270 mil mortes por ano), perdendo apenas para o câncer de mama. No Brasil, a doença responde anualmente por 4 mil mortes, com um risco estimado de 19 a cada 100 mil mulheres. “Comparativamente com países da Europa e com os Estados Unidos, a situação do Brasil é muito mais alarmante. O país tem dez vezes mais câncer de colo do útero que os países desenvolvidos”, destaca Fedrizzi.
O câncer associado ao HPV não é exclusividade feminina. Os homens estão sendo cada vez mais atingidos por tumores decorrentes do HPV, sobretudo no ânus, pênis e na boca. Segundo estudos, no nordeste do Brasil a incidência de câncer peniano e anal é a maior do mundo. “A associação do HPV com câncer no pênis varia de 30% a 50% dos casos, e o excesso de prepúcio – com ou sem fimose – influencia nos diagnósticos”, esclarece Carvalho. Ele informa que nos últimos anos vem crescendo o número de casos de HPV na região anorretal, principalmente em pacientes imunodeprimidos por HIV, e que, recentemente, o número de casos de câncer na cavidade orofaríngea associados ao HPV também aumentou.
É importante ressaltar, porém, que nem toda pessoa contaminada pelo HPV desenvolverá câncer. “Tudo vai depender do tipo do vírus, da predisposição genética e da imunidade do indivíduo”, esclarece Carvalho. O mais comum é que a pessoa não se contamine. Cerca de 90% vão se infectar e eliminar o vírus espontaneamente, outros vão desenvolver lesões e necessitar de ajuda médica, e há ainda aqueles que nunca eliminarão o HPV, por sofrer de algum tipo de imunossupressão (HIV positivo, transplantados, pacientes submetidos a quimioterapia, corticoterapia etc.).
Afinal, quem transmite o vírus? As pessoas com lesões clínicas (que apresentam verrugas visíveis) e subclínicas (aquelas em que o HPV só é detectado através de exame de magnificação) podem transmitir o vírus ao parceiro, por meio de relações sexuais onde haja ou não penetração (o DNA do vírus foi identificado em 20% das mulheres que nunca tiveram coito vaginal) e por sexo oral. Mais raramente o contágio ocorre pelas mãos. Aqueles que carregam o HPV latente (sem lesões visíveis a olho nu nem por microscópio) não apresentam a doença e portanto não transmitem o vírus.
Não existe um exame isolado para identificar o vírus no corpo humano, e por isso é comum solicitar antes ao paciente a realização de exames de magnificação como colposcopia e peniscopia para localizar lesões suspeitas. Depois, ele é aconselhado a fazer exames específicos de biópsia para que o material seja encaminhado para histologia. “O HPV não cresce em culturas comuns e não aparece em exames rotineiros de sangue. A única maneira de identificarmos o vírus é através de exames de DNA”, enfatiza Carvalho.
Vacinas nonavalentes
A estratégia de identificação do vírus tem uma história recente. Para chegar até ela, os especialistas tiveram que percorrer um longo caminho, cujo primeiro passo consistiu na descoberta do grande vilão. “Historicamente, pesquisadores observaram que o câncer de colo uterino era mais frequente em mulheres que tinham vida sexual ativa e, graças a isso, foi possível relacioná-lo a alguma moléstia sexualmente transmissível”, explica Carvalho. De acordo com ele, inicialmente foi investigada a provável relação do herpes genital com os tumores, mas estudos não confirmaram as suspeitas. Só quando se começou a associar o câncer uterino ao HPV foi que se chegou à evidência mais significativa, pois mais de 95% dos casos da doença tinham a presença confirmada de algum tipo do vírus, sobretudo o 6, o 11, o 16 e o 18. É bom lembrar que, hoje, dentre todos os tipos conhecidos de HPV, a maioria não traz riscos sérios à saúde.
“O HPV tem cura”, garante o professor da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo. “E ela pode ocorrer de forma espontânea ou através da medicina”, esclarece. O método de tratamento varia de acordo com o caso e está intimamente relacionado à imunidade do paciente. De acordo com Carvalho, geralmente, ele é feito em três etapas. Na primeira, localiza-se a lesão com algum tipo de magnificação, faz-se a identificação do vírus e, depois, aplica-se a cauterização (química, elétrica, a laser, crioterapia etc.). Na segunda, localizam-se os fatores de risco de persistência do vírus (tabagismo, uso de drogas, de corticoides e outras DSTs) a fim de eliminá-los ou controlá-los. Na terceira etapa, o paciente é submetido a tratamento imunológico.
O melhor, contudo, é prevenir. Atualmente há dois grupos de vacinas em desenvolvimento: as profiláticas e as terapêuticas. A que será aplicada na campanha brasileira é a profilática, ou seja, baseia-se na estimulação de resposta imunológica (antígenos são utilizados para ativar a produção de anticorpos). As vacinas terapêuticas (para pacientes já contaminados) estão em fase de investigação, “sendo os resultados de sua eficácia ainda não muito animadores e com dados que diferem bastante em função das características da população estudada”, informa artigo redigido por um grupo de professores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e das universidades federais do Ceará, Rio Grande do Norte e Santa Catarina.
“A vacina contra o HPV é uma grande evolução, pois tem elevado índice de imunização. Entretanto, seus resultados em relação ao índice de câncer de colo uterino só poderão ser mensurados a longo prazo”, avalia Carvalho. Ele relata que, atualmente, existe uma preocupação quanto ao surgimento de infecções causadas por outros tipos de HPV que não sejam os 6, 11, 16 e 18. As vacinas existentes até o momento são a quadrivalente e a ambivalente (esta previne contra os tipos 16 e 18). Por esse motivo, estão sendo feitos estudos para a produção de vacinas nonavalentes.
Países como Austrália, Estados Unidos, Dinamarca e Suécia baseiam a prevenção da infecção por HPV em três metas: ampla divulgação do uso de preservativos, excelentes programas de rastreamento das lesões induzidas pelo vírus através do exame Papanicolau e administração gratuita da vacina contra o HPV, principalmente para meninas antes do início da atividade sexual. Eles têm obtido êxito. O Brasil, por enquanto, corre atrás do atraso.
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