Entre tantas ebulições culturais, a música é, sem dúvida, a expressão artística de maior alcance no Brasil. Democrática, ela pode se manifestar na batida sincronizada das palmas das mãos que acompanham uma voz que se modula em melodias. De maneira despretensiosa, a música vai contando, em diferentes épocas, a história de uma geração atravessada por transformações políticas, econômicas e sociais. E nesse caldeirão de diferentes culturas que desembarcaram no país, principalmente vindas do continente africano, borbulha a axé music: estilo projetado internacionalmente pelo álbum O canto da cidade, da cantora baiana Daniela Mercury, que em setembro deste ano celebra 30 anos. Essa história é revisitada pelo jornalista e pesquisador Luciano Matos no lançamento do quarto volume da coleção Discos da Música Brasileira, das Edições Sesc São Paulo.
A partir de entrevistas, jornais, livros e outros registros o autor de O canto da cidade: da matriz afro-baiana à axé music de Daniela Mercury (2021) conta de que forma o segundo disco solo da cantora “balançou as estruturas” e inaugurou uma nova era para aquela música baiana que já vinha ganhando corpo desde os anos 1980. Um movimento que, “com a guitarra de rock’n’roll, o batuque de candomblé, o balanço de samba-reggae, as belezas de afoxé e lambadas caribenhas” – como descreveu no prefácio o crítico musical e organizador da coleção, Lauro Lisboa Garcia –, ganhou o Brasil e o mundo.
“O canto da cidade (…) foge mais ainda dos livros anteriores da coleção por falar sobre um disco que a maioria da crítica não considera como ‘clássico’. Há também em questão um estilo de música (basicamente carnavalesca), que passou a ser conhecida como axé music, para o qual a maioria torce o nariz”, explica Garcia. Assim com os outros três álbuns – Da lama ao caos (1994), Acabou chorare (1972) e África Brasil (1976) – que tiveram suas histórias narradas na coleção Discos da Música Brasileira, o livro de Luciano Matos integra um painel do momento histórico em que estas obras foram lançadas.
“Minha proposta ao coordenar essa coleção foi, a partir de determinados álbuns de grande repercussão, retroceder um pouco no tempo para mostrar do que eles resultam e também o que eles refletiram na estética e no mercado da época e o que ainda representam hoje”, explica o organizador dessa série.
Gravado na ponte aérea Salvador-Rio de Janeiro, o disco foi produzido por Liminha, ex-Mutantes que se consolidou como um dos mais importantes produtores musicais do país, responsável por álbuns de artistas consagrados, como Gilberto Gil, e da nova geração de meados da década de 1980, como Lulu Santos, Titãs e Os Paralamas do Sucesso. É Liminha, aliás, quem assina a produção do álbum Da lama ao caos (1994), de Chico Science & Nação Zumbi, cuja história ganhou o volume de estreia da coleção Discos da Música Brasileira, escrito pelo jornalista José Teles [leia matéria Caranguejo Digital, na Revista E nº 272, de junho de 2019].
Realizado de maneira coletiva, a partir do trabalho e do conhecimento de diversos profissionais da música, O canto da cidade é composto por 12 canções que até hoje são tocadas nas rádios e acessadas em plataformas de streaming de música. “Se a música baiana até então era tratada como regional e até “primitiva”, se os elementos percussivos originários dos blocos afro eram considerados meros batuques e sons do gueto, se os novos artistas que surgiam vindos da Bahia eram vistos como cafonas, Daniela virava a página e iniciava um novo capítulo naquela história”, escreveu Luciano Matos.
Entre críticas negativas e positivas do meio musical, a repercussão das músicas interpretadas pela cantora baiana foi defendida por Zuza Homem de Mello (1933-2020). Em 2008, quando o disco completava 16 anos, o crítico musical disse em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo: “Com todas as deformações e os ataques sofridos, ela (a axé music) ainda tem a capacidade de fazer a juventude dançar. E de dançar música brasileira”. Importante mestre e referência no cenário cultural brasileiro, e autor de diversos livros sobre a história da música no país [leia Perfil na Revista E nº 290, de dezembro de 2020], Zuza ponderou: “Na minha adolescência, eu dançava samba-canção, e esse ritmo vivia sendo criticado”.
Sobre o fato dessa nova geração querer “dançar música brasileira”, Daniela Mercury conta que tinha consciência desse desejo acompanhado pelo novo momento da política e da cultura que se desenhava no ano do lançamento do disco. “O contexto político me favoreceu. Em 1992, passou aquela minissérie na televisão, Anos Rebeldes; junto com o impeachment de Collor, o Brasil se abriu para a democracia e a juventude começou a se interessar mais pelo que era brasileiro. Os jovens queriam uma música mais brasileira, começaram a demandar isso e eu apresentava isso. Porque não adianta, às vezes, você estar fazendo uma ótima música num contexto histórico errado”, disse a cantora em entrevista ao autor do livro.
A partir do êxito desse disco – que surpreendeu até a diretoria da gravadora que não acreditou muito nele, segundo Lauro Lisboa Garcia –, Daniela Mercury levou diversas inovações para a avenida nos carnavais de Salvador, com várias cantoras seguindo esse caminho. “Ivete Sangalo e Claudia Leitte vieram na trilha dela dentro da música de carnaval da Bahia que se alastrou além das fronteiras brasileiras. E cantores/cantoras como Pabllo Vittar, Silva, Johnny Hooker e MC Tha revelaram em entrevistas a Luciano (Matos) influências que incluem o mise-en-scène impactante, além da estética sonora pop de Daniela. E isso tudo começou com esse disco”, ressalta Garcia.
O canto da cidade se tornou um dos discos mais importantes da axé music, da produção artística baiana mais recente e também da música brasileira produzida dos anos 1990 para cá. Um marco que mudou expectativas e comportamentos da indústria fonográfica brasileira diante dos novos sons ecoados da bahia para o mundo. “esse álbum jogou mais luz sobre as bases afro-baianas (que, sabemos, cativou até astros internacionais como michael jackson, paul simon e david byrne) da qual todos os expoentes da chamada axé music se valeram para fazer sucesso”, complementa o organizador da coleção.
Alternando depoimentos, fotografias e registros audiovisuais de shows, o documentário Axé – Canto do Povo de Um Lugar (2016), do cineasta baiano Chico Kertész, também traz a história da música baiana que brotava de diversos encontros e manifestações artísticas para culminar na, então, batizada como axé music. Entre os entrevistados que contam essa história estão Caetano Veloso, Gilberto Gil, Vovô do Ilê, Daniela Mercury e Luiz Caldas, além de outros cantores, músicos, produtores, radialistas e jornalistas. Disponível em plataformas de streaming sob demanda. Saiba mais: http://axeofilme.com.br.
Leia um trecho do livro digital O Canto da Cidade – Da matriz afro-baiana à axé music de Daniela Mercury (2021), da coleção Discos da Música Brasileira, Edições Sesc São Paulo:
Um show da cantora Daniela Mercury no vão livre do Museu de Arte de São Paulo (Masp) para 30 mil pessoas encerrou ontem o Projeto Som do Meio-Dia, na avenida Paulista. Segundo a Secretaria da Cultura, a estrutura do prédio e as obras do acervo corriam risco [trecho retirado da matéria “Balanço ao meio-dia”, publicada no jornal O Estado de S. Paulo, em 6 de junho de 1992].
Foi assim que o jornal O Estado de S. Paulo tratou a histórica apresentação da cantora baiana Daniela Mercury no dia 5 de junho de 1992. Naquela tarde de outono, a multidão dançou e pulou tanto que teria havido risco de se afetar a constituição física do museu. Aquele não era o primeiro show da cantora fora da Bahia, nem ela era a primeira artista baiana que mostrava na cidade mais populosa do país o que estava acontecendo nas ruas e no Carnaval de Salvador. A apresentação era, porém, um dos marcos que a axé music viveria naquele ano de 1992, além de ser um ponto de virada na carreira da própria cantora.
Daniela já estava com contrato assinado para o primeiro disco com a megacorporação Sony, depois de três álbuns lançados pela pequena Eldorado, dois com sua banda Companhia Clic e seu primeiro álbum solo. Aquele 5 de junho de 1992 indicava que ali não havia apenas mais uma nova cantora da Bahia, mas uma artista com capacidade de alcance muito maior do que Sarajane, Luiz Caldas, Banda Mel ou Banda Reflexu’s, todos eles autores de grandes sucessos nacionais.
Nos corredores da Sony, Daniela já causava enorme burburinho. Era tratada como grande aposta da gravadora para estourar nacionalmente e elevar a outro patamar a produção que acontecia no fértil cenário musical da Bahia daquele início dos anos 1990. O primeiro disco pela Eldorado já havia causado bastante barulho, especialmente no Norte-Nordeste, com o enorme sucesso de Swing da cor, de Luciano Gomes, que unia definitivamente a destreza pop da axé music com a força percussiva do Olodum.
Em O canto da cidade, a cantora aprofundou suas pesquisas e apostas, batendo de frente com a própria gravadora, sob a batuta de um experiente e bem-sucedido produtor. Liminha foi o responsável por aparar arestas, alinhavar a rítmica baiana com um tempero pop e transformar aquela sonoridade tão tipicamente baiana em algo mais universal e palatável. Ao mesmo tempo que era uma continuidade da música afropop baiana que já vinha sendo produzida, o disco era uma novidade por reunir e mesclar elementos de forma ainda não vista e com um nível de produção inédito.
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Na história da axé music e dos ritmos que aquele então novo mercado aglutinava, O canto da cidade não foi o disco mais vendido. Tampouco é considerado pela crítica o melhor álbum do gênero, nem mesmo o melhor da própria Daniela. Não foi o primeiro a fazer sucesso e a ultrapassar marcas impressionantes no país. Não foi o que reuniu mais hits ou o que o público brasileiro aprendeu a cantar de cabo a rabo. O canto da cidade, porém, foi sem dúvida um dos mais importantes álbuns não só da axé music e da produção baiana recente, mas da música brasileira nos últimos trinta anos.
*Assista a uma entrevista com o escritor Luciano Matos e saiba mais sobre o livro aqui.
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