“Uma história de vida não é feita para ser arquivada ou guardada numa gaveta como coisa, mas existe para transformar a cidade onde ela floresceu” (Ecléa Bosi).
Desde que o Sesc São Paulo iniciou a celebração dos 100 anos de histórias do conjunto arquitetônico onde a unidade de Registro está instalada há seis anos, a programação especial referente ao centenário vem fazendo um convite para que o público do Vale do Ribeira compartilhe memórias, percepções e afetos que o prédio enseja e carrega em seus espaços e entorno. A ideia da celebração é ouvir as múltiplas vozes que formam o Vale do Ribeira e destacar as histórias vinculadas ao edifício, ao rio Ribeira de Iguape e ao território. Avivar tanto as histórias que estão registradas, como as que estão guardadas na memória e as que estão sendo construídas no tempo presente.
Com o chamamento feito pelo Sesc Registro, distintas vivências, afetos e perspectivas em relação ao espaço estão aflorando, mostrando diferentes experiências ali vividas, resgatando diversas formas de olhar, se relacionar ou se lembrar do local e da região que o cerca. Essas experiências de “vidas vividas” vão se juntando a recortes históricos já registrados em documentos, livros e imagens que contam sobre o contexto social e econômico em que o prédio foi construído, a fase da construção, as diversas funções e ocupações nele desempenhadas ao longo do tempo, os períodos de abandono, tombamento como patrimônio histórico e de restauração, até chegar à presença do Sesc São Paulo e sua atuação no espaço histórico.
Um dos recortes dessa trajetória em que memórias afetivas têm vindo à tona diz respeito ao período de construção do KKKK, como ficou conhecido o complexo fabril e comercial instalado em Registro no início do século 20 pela Companhia Ultramarina de Desenvolvimento (de cujo nome em japonês -Kaigai Kogyo Kabushiki Kaisha- deriva a famosa sigla dos quatro Ks). Documentos que constam em acervos de museus e bibliotecas do Japão revelam detalhes sobre essa fase, como os relatos de Umesaburo Hara, administrador da companhia entre os anos de 1919 e 1922. Parte desses relatos, arquivados na Biblioteca do Parlamento Nacional do Japão, foram traduzidos pela arquiteta Akemi Hijioka, professora do IFSP-Câmpus Registro, durante sua pesquisa acadêmica sobre as construções tradicionais japonesas no Vale do Ribeira.
De acordo com os escritos de Hara, a construção do edifício se iniciou em 1919 para dar suporte ao plano de colonização japonesa do Vale do Ribeira, iniciada em 1913 de forma experimental em Iguape (Colônia Katsura). Em 1919, a Colônia de Registro já contava com mais de 450 famílias – no total, seriam duas mil famílias a se instalar na região, demandando apoio para produzir, transportar, beneficiar e comercializar sua produção agrícola. O edifício em construção abrigaria armazéns, depósito, engenho de arroz, fábrica de açúcar mascavo e funções administrativas da empresa colonizadora. Sua localização, à margem do rio Ribeira de Iguape e em frente ao antigo porto fluvial de Registro, facilitaria o escoamento dos produtos ao mercado consumidor.
Parte dos equipamentos para a montagem do engenho veio importada da Inglaterra, bem como a estrutura metálica que suporta a cobertura dos galpões de armazenamento. Sobre a planta da obra, no entanto, não há registros se foi elaborada pela empresa japonesa de imigração ou pelo engenheiro que ela contratou para executar a obra. É aqui nesse recorte do período de construção do prédio que memórias guardadas na região diferem de registros da companhia arquivados no Japão. Segundo os relatos do administrador Hara, o engenheiro José Fernandez Demaret era de origem belga e veio de São Paulo para coordenar os trabalhos de construção da fábrica, que ostentava um porte bem significativo para a época. Ainda segundo Hara, o engenheiro reunia conhecimento não somente de construção, mas também na área de instalação industrial. Do lado da Kaigai, outro engenheiro, Ohno, acompanhava o andamento da obra.
Nos registros históricos da região, porém, o engenheiro Demaret é apresentado como de origem espanhola e também como autor do projeto e administrador das obras do conjunto arquitetônico. E sua breve passagem por Registro, finalizada após a conclusão da obra, marca a história de uma família tradicional da cidade, os Nunes de Oliveira. Quem relata sobre o contexto do acontecimento é Selmo João de Oliveira, o Mimo, como é conhecido na região o desenhista projetista e servidor público aposentado, de 68 anos de idade, e que também é músico, compositor e autor dos livros “Os Bastidores do Poder”, publicado em 2002, e “Memórias Registrenses: a história de um povo pioneiro”, lançado em 2021 durante a pandemia de Covid-19.
Em depoimento ao Sesc Registro e em seu último livro, Mimo dá detalhes de como a história do prédio erguido pela companhia japonesa se entrelaça com a de sua família. “Quando o engenheiro Demaret veio administrar a obra, ele ficava no antigo Hotel Registro (de Shitiro Maeji), e começou a namorar com minha avó, Maria Nunes de Oliveira. Ela contava que à noite, eles saíam para lancear tainha numa prainha rio Ribeira acima, e numa dessas lanceadas nasceu meu pai, João Nunes de Oliveira. Acabou a obra, o engenheiro foi embora, mas depois ele ficou sabendo que minha avó ficou grávida e veio visitar meu pai, que estava com dois anos. Com medo que ele quisesse levar o filho embora, minha avó nem o recebeu, e pediu para uma de suas irmãs enganar o engenheiro, dizendo que o filho tinha nascido morto. E assim meu avô foi embora e nunca mais voltou”.
Um dos motivos que levaram o escritor registrense a reunir no livro algumas memórias da família – e de tantas outras da cidade – foi o desejo de resgatar a história do pai, que, seguindo a profissão do engenheiro Demaret, se tornou projetista e proprietário do primeiro escritório de engenharia de Registro. Mimo conta que João Nunes de Oliveira, décadas depois, também foi desenhista no KKKK e, como lembrança, guardou partes do projeto feito por Demaret para a companhia.
A peça, com a assinatura do engenheiro datada de 1920, foi doada pela família Nunes de Oliveira à prefeitura da cidade e, posteriormente, ao memorial da imigração japonesa. O escritor comenta que antes, no memorial, constava a foto de um engenheiro japonês como autor do projeto do KKKK. “Todo mundo confunde essa história do nome”, diz. Por isso, a decisão de contar a história do pai e do avô no livro. Selmo Mimo de Oliveira recorda que seu pai tinha muito orgulho de ser filho de Demaret e que sua assinatura tinha o mesmo estilo da que consta no projeto da obra do KKKK. “A letra “jota” na assinatura do meu pai era igualzinha à feita pelo meu avô José Fernandez Demaret”, reforça.
“As lembranças se apoiam nas pedras da cidade. […]
a memória escolhe lugares privilegiados de onde retira sua seiva (Ecléa Bosi).
Ainda na fase de construção do prédio centenário, um ano antes do início das obras (1919), de acordo com os relatos do administrador da Kaigai à época, Umesaburo Hara, a companhia de imigração trouxe de São Paulo cinco famílias de italianos que tinham bastante experiência em olaria, para que fabricassem as dezenas de milhares de tijolos necessários para erguer o prédio. Foram providenciados o forno, o espaço da olaria e a moradia para as famílias.
No documento traduzido pela arquiteta e professora Akemi Hijioka, Hara relata um episódio que o impactou muito em relação às famílias italianas. “Numa tarde, ouviu uma canção ao longe, vinda da margem do Ribeira. Sabia que não era japonês, mas pensou: quem poderia ser? Para sua surpresa era um dos oleiros italianos, em plena voz. Depois viu que, entre eles, havia quem tocasse clarinete, violão, mandolim. Ele sabia que os italianos eram excelentes mundo afora quando se tratava de música, mas constatar isso nesse interior, longe de tudo, foi algo invejável”.
Mais uma vez, uma história registrada referente à construção do prédio se entrelaça com o de outra família tradicional de Registro: os Camillo, que trazem à tona mais memórias para compor a fase de construção do prédio centenário. Seja com um ou com dois “l” na grafia, a família Camillo tem sua história plantada nessa terra, conforme relataram ao Sesc Registro Ronaldo Camillo Riganti, 40
anos, João Camillo Neto, 82 anos e Konda Camillo, 80 anos, descendentes do patriarca João Camillo, imigrante italiano que chegou ao Brasil em 1908 e se fixou em Guarulhos com outros irmãos. Um ano depois, mudou-se para Iguape e depois para Registro, na época um pequeno povoado que pertencia a Iguape.
E em qual atividade João Camillo se tornaria pioneiro no povoado? Na fabricação de tijolos. É da família Camillo a primeira olaria instalada em Registro, no ano de 1912, em local próximo à primeira ponte construída sobre o rio Ribeira. Assim, quando a Kaigai realiza a obra do prédio, entre 1919 e 1922, os oleiros Camillo já fabricavam tijolos para uma cidade que estava em crescimento e seus descendentes hoje afirmam que a família também teve uma parcela de contribuição na construção do prédio centenário.
“Na olaria foi quando a gente começou a se entender como gente”, ressalta João Camillo Neto. Naqueles tempos, ele recorda, começava-se a trabalhar muito cedo. Então, ainda iniciando na adolescência, ele também ajudava na olaria. “A gente trabalhava, brincava, batia tijolo. Começava cedo, quatro horas da manhã. Não era nada mecanizado, era tudo manual, tijolo por tijolo, um trabalho artesanal, artístico até”. Conforme lembra Konda Camillo, o único apoio para amenizar o trabalho braçal vinha do cavalo, que puxava a pipa, um equipamento rústico usado para homogeneizar os materiais. O barro vinha da margem do rio, na mesma região onde ainda hoje funcionam as únicas duas olarias em Registro, também de propriedade de famílias com origem italiana.
“Naquela época, vendemos tijolo pra chuchu, não vencia fabricar. Afinal, foi o período de construção de Registro”, reforça Ronaldo. Assim como os tijolos usados na construção do prédio da Kaigai tinham em relevo a letra “K”, o oleiro italiano local também havia criado uma marca para personalizar os tijolos que produzia: uma chave cravada em cada tijolo. Ronaldo Camillo Riganti diz que sempre se perguntou sobre o que poderia significar aquela chave. “Não sei explicar, mas na minha imaginação tem a ver com a chave da casa própria, um símbolo de pertencimento”, comenta.
Hoje em dia, no centro velho de Registro, ainda é possível encontrar pedaços de “tijolos da chave” em algum terreno onde uma casa antiga foi derrubada. Alguns exemplares também foram guardados por familiares como lembrança, materializando a memória. “Nossos tijolos eram os mais procurados para as construções, porque são firmes, não esfarelam. A parede fica sólida, difícil de quebrar, porque a argila era muito boa. Muitas construções no centro e entorno são assim ainda”, afirmam.
Da quarta geração dos Camillo que em Registro se estabeleceram para viver, Ronaldo Camillo Riganti diz que sempre procura transmitir aos filhos o orgulho que sente do trabalho feito por seus antepassados e do legado que deixaram na cidade. “Já expliquei a eles como foi construído o prédio do KKKK, o estilo de arquitetura, a história do porquê dos 4 Ks e, principalmente, digo sempre que grande parcela daqueles tijolos foi feita pela nossa família. Registro cresceu ao redor desse prédio e hoje, dentro dele, com o Sesc, meus filhos também têm um aprendizado. Então, a gente valoriza bastante esse lugar, porque é um símbolo para Registro”.
“Mas a memória rema contra a maré […] Daí a importância da coletividade no suporte da memória. Quando as vozes das testemunhas se dispersam, se apagam, nós ficamos sem guia para percorrer os caminhos da nossa história […]” (Ecléa Bosi).
Símbolo de um período que marcou a história da cidade e do Vale do Ribeira – a colonização japonesa – o prédio que hoje é o Sesc Registro guarda e revela uma porção de fragmentos de memórias e afetos que vão ajudando a tecer e a registrar histórias de uma edificação que, um século depois, segue se destacando na paisagem urbana de Registro e na memória coletiva da cidade.
Mas ainda há lacunas na composição das memórias desse patrimônio histórico-cultural. Há histórias vividas no local e em seu entorno que seguem apagadas, e que, se fossem despertadas, poderiam retratar as experiências, os saberes e os fazeres de pessoas até então invisibilizadas nesse percurso histórico. Como, por exemplo, as histórias das pessoas que construíram o prédio. Afinal, o que se sabe sobre as muitas mãos que ergueram o conjunto arquitetônico no início do século passado? Quem colocou em prática o projeto construtivo da obra, carregou os materiais, assentou os tijolos, ergueu as paredes, cobriu o telhado, instalou os equipamentos?
Já questionava Bertold Brecht em seu poema “Perguntas de um trabalhador que lê”: “Quem construiu a Tebas de sete portas? Nos livros estão nomes de reis: arrastaram eles os blocos de pedra? E a Babilônia várias vezes destruída, quem a reconstruiu tantas vezes? Em que casas da Lima dourada moravam os construtores? Para onde foram os pedreiros, na noite em que a Muralha da China ficou pronta? A grande Roma está cheia de arcos do triunfo: quem os ergueu? […] Tantas histórias. Tantas questões”.
Assim, diante de tantas histórias e questões e como parte integrante da trajetória centenária desse lugar de memórias, o Sesc Registro prossegue com seu chamamento ao público do Vale do Ribeira em busca de mais histórias, com a perspectiva de desvendar o real e o imaginário do que foi no passado, do que é no presente e do que será esse patrimônio histórico-cultural da região nos próximos 100 anos.
Fontes consultadas:
BOSI, Ecléa. Memória da cidade: lembranças paulistanas.
HIJIOKA, Akemi. Apresentação na mesa “100 anos de histórias e arquitetura”.
OLIVEIRA, Selmo Mimo de. Memórias Registrenses: a história de um povo pioneiro. Peruíbe: Editora Inteligência, 2021. p. 62-63.
FORTES, Roberto. KKKK: 100 anos de histórias (2022).
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