Foto: Jorge Etecheber
Quando o compositor e radialista Ary Barroso (1903-1964) se dirigiu ao jovem trombonista João José Pereira de Souza para felicitá-lo – o rapaz acabara de vencer o acirrado concurso de calouros do programa A Hora do Pato, comandado pelo autor de Aquarela do Brasil na Rádio Tupi, nos anos 1950 –, foi possível ouvir, também, uma sentença: “É o seguinte, de hoje em diante você vai se chamar Raulito!”. João foi convencido pelo anfitrião de que seu nome de batismo não era lá muito artístico. Além disso, Barroso viu no novato uma versão iniciante do trombonista Raul de Barros (1915-2009), autor do choro Na Glória.
Anos depois do episódio, Raulito (ou Raulzinho) já se destacava na cena jazzística carioca e decidiu adotar, ele próprio, uma nova alcunha. Passou a assinar Raul de Souza. E foi assim que se tornou mundialmente conhecido um dos maiores expoentes da música instrumental brasileira, que morreu em 13 de junho, aos 86 anos, após mais de seis décadas de uma trajetória entre os grandes do jazz. O trombonista, saxofonista, arranjador e compositor de Bangu, bairro da zona oeste do Rio de Janeiro, deixou uma obra que atesta seu virtuosismo e talento excepcionais. “Além da evidente facilidade que tinha para tocar diversos instrumentos – não é comum ver um trombonista também tocar tão bem um sax tenor, como ele –, Raul foi um grande improvisador”, explica o jornalista e crítico musical Carlos Calado.
Ele relata que a maestria do músico era uma constante. “Diria que a fase do samba-jazz, nos anos 1960, foi o preâmbulo para a sua consagração definitiva, na década de 1970, quando seu talento foi reconhecido nos Estados Unidos, graças aos excelentes discos que gravou e suas parcerias com astros e estrelas do jazz, como Sarah Vaughan (1924-1990), Ron Carter e Stanley Clarke, além de Airto Moreira e Flora Purim. Como sabemos, no Brasil, ‘santos’ de casa raramente fazem milagres”, reflete.
NA CADÊNCIA
Raul de Souza improvisava na vida desde cedo. O pai, pastor evangélico, esperava o mesmo futuro para o filho – em vão –, como explicou o próprio músico em depoimento publicado na edição nº 157, da Revista E. Adolescente, trabalhou na fábrica de tecidos Bangu, que abrigava uma pequena banda marcial. Lá, começou a tocar tuba, e o interesse por instrumentos de sopro cresceu, embora não tivesse dinheiro para comprar sequer um aparelho de som – escutava as famosas emissoras de rádio da época, como a Mayrink Veiga, na casa de um vizinho. Atento às sonoridades que chegavam do exterior, apaixonou-se por Miles Davis (1926-1991), John Coltrane (1926-1967) e Louis Armstrong (1902-1971).
Da tecelagem para os palcos das gafieiras e bailes do subúrbio foi um salto. Aos 23 anos, levado por Altamiro Carrilho (1924-2012), participou de sua primeira gravação como integrante da Turma da Gafieira, composta ainda por Sivuca (1930-2006) e Baden Powell (1937-2000), entre outros gigantes. “No Beco das Garrafas, a antiga passagem boêmia do bairro de Copacabana que, entre 1961 e 1966, foi importante espaço para uma geração de jovens instrumentistas afinados com a bossa nova e com o jazz moderno, o trombonista passou a brilhar”, explica o escritor e jornalista Ruy Castro.
“O Beco permitiu também que outros espaços se abrissem para eles na mesma época e chamou a atenção das gravadoras, que os convidaram a fazer discos anticomerciais. Raul foi um dos principais nomes dessa turma, ao lado do saxofonista J. T. Meirelles (1940-2008), do pianista Tenorio Jr. (1941-1976) e do baterista Edison Machado (1934-1990)”, analisa Castro, que descobriu Souza em 1964, por meio dos discos e pelos artigos sobre samba-jazz do colunista franco-carioca Robert Celerier, publicados no Correio da Manhã.
ENTRE OS MAIORES
“Minha paixão por ele foi imediata e sempre tive tudo que ele gravou. Mas só nos conhecemos em 1988, quando eu estava fazendo o livro Chega de Saudade”, rememora o escritor. “Lembro dele contando de sua emoção ao ser reconhecido como grande pelo trombonista que ele justamente idolatrava: Frank Rosolino (1926-1978), ex-membro da orquestra de Stan Kenton (1911-1979). Na verdade, Rosolino teria dito a ele que ele, Raul, era melhor”, afirma. Rosolino se tornou um dos incontáveis amigos de Souza, que o trouxe ao Brasil e com quem se apresentou em dueto no antológico Festival de Jazz de São Paulo, em 1978.
O primeiro álbum solo, À Vontade Mesmo, veio em 1965. Antes, juntou-se a Sérgio Mendes e ao sexteto Bossa Rio, com o qual gravou o clássico Você Ainda Não Ouviu Nada – The Beat of Brazil (1963), para excursionar pelos Estados Unidos e Europa. Na década seguinte, residindo em Los Angeles, lançou os aclamados álbuns Colors, Sweet Lucy e Don’t Ask My Neighbors. Depois da longa temporada na terra do Tio Sam, voltou ao Brasil, onde dividiu palcos com Tom Jobim (1927-1994), Paulo Moura (1932-2010), João Donato, Milton Nascimento, Maria Bethânia, Gilberto Gil e Hermeto Pascoal. Nesse período estabeleceu inúmeras gravações e parcerias.
BRILHO NOBRE
No início da carreira, Raul de Souza concebeu um trombone elétrico de pisto com quatro válvulas cromáticas, aperfeiçoamento do trombone tradicional, de três válvulas. Acreditava que o mecanismo sintetizaria melhor sua técnica de sopro, swing e melodia únicos. O instrumento foi patenteado pelo músico e ganhou o nome de Souzabone. Em 1964, já havia optado pelo trombone de vara, mas o prestígio como artista engenhoso e inquieto o acompanhou até a aposentadoria, em novembro de 2020, quando descobriu o câncer de garganta que o vitimou.
O compositor, arranjador e multi-instrumentista Egberto Gismonti coleciona momentos afetuosos com o grande amigo, que, junto às lendas da bateria Wilson das Neves (1936-2017) e Robertinho Silva, testemunhou seus primeiros passos. “A grande característica do Rauzinho é que ele sempre soube de todas as músicas que iria tocar na vida. E ele não as tinha ouvido ainda!”, conta, fascinado. “Uma coisa que o define é: como é possível saber tanto sem ter passado longos anos dentro de uma escola acadêmica, um conservatório? Tem pessoas que criam as regras e aquelas que as descobrem e vivem com elas. O Rauzinho era aquela pessoa que inventava, criava e reinventava regras a cada dez minutos. Isso o tornava um absoluto libertário de qualquer formalidade.”
O trombonista Bocato, um dos mais importantes instrumentistas brasileiros em atividade, também reverencia a generosidade constante do companheiro. “Um dia alguém falou para o Raul: Você sabe que tem um cara que toca muito trombone? Ao que ele responde: você acha que ele toca bem trombone? É porque você nunca o viu tocando violão”, recorda-se, sobre um dos incentivos que recebeu do músico. “Cada vez fica mais clara a grande mescla de estilos que ele sempre propôs. Em cada trombonista, seja brasileiro ou não, o Raul de Souza vive!”
CONSAGRADO, ARTISTA LANÇOU PÉROLAS MUSICAIS PELO SELO SESC
Consolidado como um dos grandes jazzistas de sua época, Raul de Souza celebrava sua trajetória de sucesso com trabalhos de fôlego. Pelo Selo Sesc, lançou os discos Voilà (2012) e Blue Voyage (2018) só com inéditas – todas as oito faixas deste último, por exemplo, são de sua autoria, incluindo os arranjos. Já o repertório do álbum (uma referência à cor azul, a preferida do trombonista) é interpretado na companhia dos músicos Mauro Martins (bateria), Glauco Sölter (contrabaixo) e Leo Montana (piano). O trabalho foi gravado na sala Maison des Artistes, na cidade de Chamonix, situada entre França, Suíça e Itália. Passeando por canções como Vila Mariana, que abre o álbum, e Chegada, estão presentes variantes do samba, como a sambossa.
Em 2012, Raul lançou seu primeiro DVD, O Universo Musical de Raul de Souza, com participações especiais de notórios companheiros de palco, como o flautista e saxofonista argentino-brasileiro Hector Costita. O espetáculo reúne um repertório que revisita toda a sua carreira até então, além de homenagear outros músicos e amigos, entre os quais João Donato e Altamiro Carrilho. Com o projeto, do qual fez parte o álbum Voilà, Souza foi considerado o melhor solista pelo Prêmio da Música Brasileira daquele ano.
QUATRO ÁLBUNS DE OUTROS MÚSICOS BRASILEIROS QUE CULTIVARAM PARCERIAS INTERNACIONAIS DE GRANDE SUCESSO
Prelude, Eumir Deodato (1973)
O disco é o oitavo trabalho do pianista brasileiro. Sua versão para Also sprach Zarathustra, de Richard Strauss, ganhou o Grammy de 1974 de Melhor Performance Pop Instrumental. Participam do álbum músicos de jazz renomados, como o guitarrista John Tropea, os baixistas Ron Carter e Stanley Clarke e o baterista Billy Cobham.
Herb Alpert presents Sérgio Mendes & Brasil 66 (1966)
O principal sucesso do disco, captaneado pelo pianista brasileiro Sérgio Mendes e o trompetista norte-americano Herb Alpert foi a canção Mas Que Nada, de Jorge Ben, que recebeu um arranjo suingado.Outro destaque é Day Tripper, dos Beatles, sob a roupagem da bossa nova de Mendes e do Brasil 66.
Getz/Gilberto (1964)
O álbum tornou-se uma referência do jazz e da bossa nova. Lançado pelo violonista brasileiro João Gilberto (1931-2019) e pelo saxofonista estadunidense Stan Getz (1927-1991), com participação especial de Tom Jobim no piano e Astrud Gilberto nos vocais de algumas faixas.
Francis Albert Sinatra & Antonio Carlos Jobim (1967)
Disco de estúdio do cantor norte-americano Frank Sinatra (1915-1998) em parceria com o compositor brasileiro Tom Jobim. Chegou a ocupar a 19ª posição da Billboard e traz o clássico The Girl from Ipanema (Garota de Ipanema), canção pela qual a música brasileira é conhecida internacionalmente até os dias de hoje.
O IMPROVISO SUINGADO DO BRASILEIRO ESTÁ PRESENTE EM ÁLBUNS EMBLEMÁTICOS E EM PRODUÇÕES AUDIOVISUAIS DISPONÍVEIS NA INTERNET
DISCOS
À Vontade Mesmo (1965)
O álbum marca a estreia de Raul de Souza como solista (na época ainda assinando como Raulzinho) e conta com a formação original do Sambalanço Trio: César Camargo Mariano (piano), Humberto Clayber (contrabaixo) e Airto Moreira (bateria).
Colors (1975)
Com arranjos do lendário trombonista J. J. Johnson (1924-2001), o disco virou tópico de estudo na Berklee College of Music, em Boston, instituição onde Souza também estudou enquanto vivia nos Estados Unidos.
Sweet Lucy (1977)
O disco teve a produção do tecladista George Duke (1946-2013), artista considerado pioneiro na fusão entre jazz acústico, funk e soul.
Don’t Ask My Neighbors (1978)
O LP foi destaque na edição norte-americana da revista Billboard, especializada em música, e chegou ao 38° posto de discos de jazz mais vendidos daquele ano.
‘Til Tomorrow Comes (1979)
O trabalho tem a participação especial do arranjador, compositor e saxofonista Moacir Santos (1926-2006), mestre do jazz afro-brasileiro.
Jazzmim (2006)
O álbum conta com a interpretação de Piano na Mangueira, composição de Tom Jobim e Chico Buarque. Apresenta, também, uma faixa em homenagem à esposa de Raul de Souza, Yolaine.
Curitiba 58 (2020)
O álbum remete ao tempo em que Raul viveu na capital paranaense. A banda que acompanha o músico é formada por Mário Conde (guitarra), Glauco Sölter (contrabaixo), Fábio Torres (piano) e Sérgio Machado (bateria).
Plenitude (2021)
O último trabalho do trombonista é composto de 16 temas, entre os quais uma canção dedicada à neta Aura. Na introdução (Spoken), Raul declara, com sua voz grave: “Estou feliz, estou contente!”.
PRODUÇÕES AUDIOVISUAIS
Instrumental Sesc Brasil (2009)
No registro do show no Sesc Avenida Paulista, Raul de Souza apresenta composições autorais de jazz e música popular brasileira.
Instrumental Sesc Brasil (2012)
Show gravado no Sesc Consolação. Mescla repertório próprio e canções de outros compositores.
Instrumental Sesc Brasil (2017)
Espetáculo também registrado no Sesc Consolação. No repertório, canções autorais, jazz e música popular brasileira.
Passagem de Som: Raul de Souza (2017)
Especial mostra os bastidores do show do trombonista no Sesc Consolação, um encontro com o baterista Zinho e uma visita ao sobrado em que Souza morou em 1967 na Casa Verde, em São Paulo.
Tributo a Raul de Souza no Sesc Vila Mariana para o Sesc Jazz (2021)
A memória do músico é celebrada pela banda que o acompanhava, em um concerto de samba-jazz com canções de sua autoria, além de composições de Tom Jobim e de Sérgio Mendes. A apresentação reúne o depoimento em vídeo do jornalista e escritor Ruy Castro. Participações de Bocato (trombone de pistos), Sérgio Coelho (trombone de vara) e Hector Costita (saxofone).
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