Vídeo-Cartas: Conexões Migrantes para o Dia Internacional dos Direitos Humanos

04/12/2020

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Encerramento da oficina no Sesc Carmo, com exibição pública das vídeo-cartas. Foto: Bárbara Carneiro

Por Daniel Perseguim, Juan Cusicanki e Karina Quintanilha*  

Em 2019, por meio de uma parceria entre o Fórum Fontié ki Kwaze – Fronteiras Cruzadas (ECA/USP) e o Sesc Carmo, foi realizado o projeto Vídeo-Cartas: Conexões Migrantes, uma proposta de intervenção artística e interdisciplinar sobre a realidade migratória. O projeto abre caminhos para potencializar as lutas por direitos humanos e constituir uma rede engajada com as comunidades e movimentos de migrantes no Brasil e no mundo. 

É lugar comum referir-se à migração como um fenômeno natural, que sempre ocorreu na história da humanidade. No entanto, essa perspectiva de naturalidade das migrações esconde a tragédia social de âmbito global decorrente da história moderna, com o surgimento dos Estados e o estabelecimento das fronteiras nacionais, da colonização, da escravidão e, mais recentemente, das guerras transnacionais.  

Como analisa o pesquisador mexicano Raul Delgado Wise, a migração forçada contemporânea é expressão de um processo acelerado de crise multidimensional – política, social, financeira, sanitária, ambiental etc. – que reflete também uma crise de direitos humanos, principalmente diante das populações deslocadas, expulsas, refugiadas, que enfrentam cada vez mais fronteiras fechadas e condições precárias de vida. 

No atual contexto dessa crise agudizada pelo capitalismo pandêmico, uma expressão utilizada pelo sociólogo brasileiro Ricardo Antunes, também verificamos a tendência à necropolítica, como ensina o filósofo camaronês Achille Mbembe, a exemplo dos centros de detenção de migrantes indocumentados e de crianças migrantes presas e separadas das famílias, sobretudo nos Estados Unidos e Europa. No Brasil também tem ressoado ideias e normativas que buscam associar migrantes com a ideia de “pessoas perigosas” (Portaria nº 770/2019), um pensamento com raízes coloniais e ditatoriais. Na pandemia, por exemplo, cresceram em mais de 900% o número de deportações pelo Estado brasileiro, e multiplicam-se denúncias de discriminação, racismo e arbitrariedades. 

Diante dos complexos desafios dessa realidade comparável a um “apartheid global”, vemos surgir no horizonte amplos processos de resistência, que reatualizam movimentos políticos, culturais e as lutas por direitos humanos, cada vez mais protagonizados por mulheres, negros, LGBT’s e também imigrantes. Exemplo disso, são as Caravanas de Migrantes que partem da América Central, a mobilização “a day without immigrants” nos Estados Unidos, as ocupações dos “San Papiers” na França, e a campanha internacional #regularizaçãojá, que ganhou fôlego na pandemia. Vemos, dessa forma, o fenômeno das migrações cada vez mais no centro das transformações sociais, impulsionando contribuições pioneiras para a humanidade também no campo das ciências, das artes, da cultura, como evidenciam recentes produções cinematográficas, bienais de arte, exposições, performances, instalações e festivais.  

Como fruto dessa sinergia transnacional e transversal às lutas sociais, no coração de São Paulo, território onde vivem e circulam pessoas de todo o mundo em busca de trabalho e afetos, surgiu o projeto Vídeo-Cartas: Conexões Migrantes

Inspirado em movimentos artísticos como o Teatro do Oprimido e o Tropicalismo, e também em pesquisas sobre a vídeo-arte, o design de mídia, o cinema expandido e a arte-postal, o projeto impulsionou o desejo de criação de um laboratório audiovisual multicultural com base em investigações e experiências junto a grupos de pesquisa acadêmica e redes de produtores culturais periféricos.  

A proposta das oficinas de conectar pessoas e narrativas separadas pelo contexto geopolítico e econômico por meio da comunicação audiovisual atraiu pessoas brasileiras e imigrantes, que se tornaram os protagonistas das suas próprias vídeo-cartas: Abdo Ja Rour (Síria), Alohá de la Queiroz (Brasil), Cleia Plácido (Brasil), Christina Janstein (Suiça), Juan Cusicanki (Bolívia), Nduduzo Siba (África do Sul), Paulo Zeminian (Brasil), Prudence Kalambay (República Democrática do Congo), Rawa Alsagheer (Palestina), Shirley Maia (Brasil), Valquíria Lage (Brasil), Virgínia Lage (Brasil), contando com a participação de Oscar Flores (Bolívia), Ghislain Batatu (República Democrática do Congo) e Precious Madonsela (África do Sul). 

A ideia central era, então, por meio de exercícios corporais, de performance e da escrita colaborativa, por meio de um roteiro-carta, ativar a memória afetiva do público participante, ao registrar em vídeo as narrativas pessoais e histórias sobre experiências migratórias.  
 

A proposta de transformar as memórias e manifestações artísticas dos participantes em “Vídeo-Cartas” disponibilizadas no YouTube também abria a perspectiva de aproximar pessoas e histórias de vida que se encontrassem distantes. Trata-se de se investigar e experimentar uma outra forma de se habitar o mundo virtual, produzindo novas ideias e ideais, como o cosmopolitanismo e a intersubjetividade.  

Desde a sua criação, os vídeos passaram a fazer parte de eventos e a circular em diferentes espaços. Houve uma exibição com participação dos protagonistas no Centro Cultural, Bar & Restaurante Árabe Al Janiah, com a presença de migrantes moradores do Centro de Acolhida Casa de Assis. Ao final de 2019, o projeto também foi selecionado e participou da 5ª Feira de Ideias, realizada pela ONG de direitos humanos Conectas em parceria com o Sesc Pompeia, onde o público pode ter contato com o projeto por meio de uma instalação artística. 

Este ano, o projeto se desdobra na Mostra Vídeo-Cartas: Conexões Migrantes, mais uma vez com o apoio do Sesc Carmo, em parceria com a 3ª edição do Fronteiras Cruzadas, por meio do Culturas em trânsito: refúgio e migração – Ações para a Cidadania. No dia 8 de dezembro, antevéspera do Dia Internacional dos Direitos Humanos, aconteceu um bate-papo com Nduduzo Siba, Juan Cusicanqui, Prudence Kalambay e Abdo Ja Rour, e mediação de Alan Dias Fernandes. Essa conversa está acessível na íntegra no YouTube do Sesc Carmo e aqui embaixo. 

* Daniel Perseguim é comunicador social e mestre em artes (USP), desenvolve criações e experiências nos campos da arte, educação e tecnologia atuando como fotógrafo, editor, roteirista e diretor. 

Juan Cusicanki é ator, músico, performer, projetista, cenógrafo e imigrante das artes – propagando a Cultura dos Povos Originários, Quéchuas, Guaranis, Aymaras e povos Indígenas do Brasil.

Karina Quintanilha é pesquisadora-curadora do Fórum Internacional Fontié ki Kwaze – Fronteiras Cruzadas (ECA-USP), produtora de projetos como “Vídeo-Cartas: Conexões Migrantes”.

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