VIRGÍNIA EM MIM | Depoimento da atriz e roteirista Cláudia Abreu

01/09/2022

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ATRIZ E ROTEIRISTA VOLTA AOS PALCOS DO TEATRO COM MONÓLOGO SOBRE A ESCRITORA BRITÂNICA VIRGINIA WOOLF

Esta história termina num rio. Ou melhor, começa nas águas caudalosas do rio Ouse, na Inglaterra de 1941, quando a escritora Virginia Woolf decide morrer. Tendo esse episódio como espinha dorsal, Cláudia Abreu empresta corpo e voz à autora de Mrs. Dalloway (1925), guiando os espectadores de Virginia, monólogo que estreou em julho, no Sesc 24 de Maio. Sob direção de 

Amir Haddad, a atriz interpreta seu primeiro texto dramatúrgico e reencontra a escritora cuja obra havia conhecido no palco, aos 18 anos, quando encenou uma adaptação do romance Orlando (1928). Depois de 36 anos dedicados ao teatro, cinema e televisão, Cláudia, que também é graduada em filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), veste-se de Virginia. No palco, dá vida a uma das precursoras no uso do fluxo de consciência – técnica modernista que marcou a literatura do século 20. Aliás, a atriz e dramaturga também adota esse mesmo fluxo de idas e vindas no tempo e na alternância de personagens narradores para que o público acompanhe as dores, as descobertas e a genialidade de Virginia Woolf. “Foi tudo inédito para mim, porque eu nunca tinha escrito uma peça e nunca tinha estado em cena sozinha. Comecei a escrever, na verdade, dentro de mim, a partir do momento em que comecei a dialogar com a Virginia”, conta à Revista E. Neste Depoimento, Cláudia Abreu compartilha como foi o processo de criação do monólogo, fala sobre a literatura como companhia, e ainda filosofa sobre lucidez, loucura e finitude.

COMO UM PUNHAL

Foi tudo inédito para mim, porque eu nunca tinha escrito uma peça e nunca tinha estado em cena sozinha. Comecei a escrever, na verdade, dentro de mim, a partir do momento em que comecei a dialogar com a Virginia (Woolf). Eu já queria escrever sobre fluxo de consciência e, por isso, fui atrás de uma professora de literatura. Eu já fazia aula (de escrita), produzi Valentins [série infantojuvenil para a televisão, que estreou em 2017] – e vinha escrevendo, também, na faculdade de filosofia. Então, tudo isso foi se somando dentro de mim. Aí, quando comecei a ler Virginia com mais atenção, para entender essa coisa do fluxo que transita no tempo, comecei a me identificar com ela de uma maneira muito mais profunda e a entender que a relação que eu tinha com a obra dela, e com ela, ia além de entender a questão técnica e literária do fluxo de consciência. Comecei a me identificar muito com a obra dela, com sua visão de mundo, de existência…Com as observações que ela fazia e que eram punhais que entravam de  maneira avassaladora e profunda em mim. 

PROCESSO CRIATIVO

Você lê, lê e lê para, então, escrever. Você se imbui de muita pesquisa, algo que foi muito prazeroso e natural. Era simplesmente ler tudo sobre ela (Virginia Woolf), ler a obra dela. Então, a escrita foi o que tinha ficado de mais marcante em mim, sobretudo de vida e obra. E o que era esse conteúdo? Era o humano. Eu queria falar sobre o ser humano, e que podia ser Virginia Woolf, como podia ser minha vida ou a sua. O que faz isso diferente é ela, que apesar de todas as características, de todas as adversidades internas e externas, conseguiu construir uma obra brilhante. Ela conseguiu superar. Acho que isso também dá outra dimensão ao humano, que é poder ter dúvidas sobre si mesmo, sobre sua sanidade. Você pode ter dificuldades para ter acesso a conteúdo e ao conhecimento por ser mulher numa determinada época; você pode ter dúvidas sobre seu trabalho e até sobre seu talento literário, mas ela transformou tudo isso em literatura e revolucionou. Então, meu processo de escrita veio desse inventário que fiz sobre mim, sobre o que estava mais forte de Virginia em mim. E aí, isso veio à tona através da escrita, da oralidade, de quando eu gravava improvisações ou áudios. Veio exatamente isso que é o princípio do teatro: um ser humano diante de outro ser humano. 

O meu humano diante do humano dela, e que conversa haveria entre nós.

MEU PROCESSO DE ESCRITA VEIO DESSE INVENTÁRIO QUE EU FIZ SOBRE MIM, SOBRE O QUE ESTAVA MAIS FORTE DE VIRGINIA EM MIM

EXCESSO DE LUCIDEZ

O conceito de normal varia de tempos em tempos. Na época de Shakespeare, não era normal uma mulher escrever nem ser atriz – os homens faziam papéis de mulheres. A própria Virginia, em Um teto todo seu (1929), imagina como seria se Shakespeare tivesse uma irmã, e se ela fosse genial. Assim como na época de Virginia, não era normal que ela tivesse desejo por outra mulher. Então, o que é o normal e o que dita o normal? O normal aqui no Brasil é diferente do normal no Afeganistão, na China. O normal varia de tempos, de lugares. Ao mesmo tempo, existe o lugar do normal que tem muito a ver com o lugar político, com o lugar onde você vive e também com as religiões. Eu falei isso numa entrevista: “O normal é você não apresentar riscos para a sociedade, né?”. O normal é ser igual a todo mundo, é não ter uma opinião diferente, é não arriscar, é ser previsível e fazer parte daquele grupo. Isso é tido como normal. Ao mesmo tempo, se você for ampliar isso para lucidez e loucura, você fala: Bom, o que é ser normal? É ser lúcido a ponto de entender que eu tenho que fazer parte desse grupo sem me destacar, sem ter nada que me desabone, que me coloque em risco. Ou excesso de lucidez é perceber o quanto isso é absurdo, o quanto você tem o direito a ser quem é e a pensar diferente, e isso está associado à loucura? Quando você fala verdades, quando você fala que “o rei está nu”? Aliás, essa foi a primeira peça que eu fiz na vida [frase dita no conto A Roupa Nova do Rei, do dinamarquês Hans Christian Andersen e publicado em 1837]. É excesso de lucidez poder falar o que você está vendo? Muitas vezes, você é considerado louco por falar a verdade ou por ser “inconveniente”. Quantas pessoas foram consideradas loucas simplesmente porque eram diferentes? 

FILOSOFIA PRESENTE

A filosofia sempre existiu em mim de uma maneira natural porque sempre fui muito reflexiva. Uma das lembranças mais antigas que tenho é na escola, criança, olhando para o céu e perguntando: “Mas, onde é que eu estava antes?”. Perguntas bobas, básicas, e que para mim batiam de uma maneira mais profunda. Aos 20 e poucos anos, eu tinha um grupo de estudos de filosofia, antes de fazer faculdade, e isso abriu muito a minha cabeça. Só que quando comecei a fazer teatro, na adolescência, já fui chamada para fazer televisão. Tinha 16 anos no curso de teatro no Tablado [escola brasileira de teatro fundada em 1951, no Rio de Janeiro, pela escritora e dramaturga brasileira Maria Clara Machado], quando foram lá me assistir. Eu fazia O Despertar da Primavera (em 1986) e já me chamaram para fazer televisão. Então, quando terminei o ensino médio, eu já estava totalmente envolvida com a minha profissão e naquele momento não fazia sentido prestar vestibular. Mas, eu falei: “Quando eu entrar numa faculdade, vai ser para estudar alguma coisa que eu escolha num momento mais calmo” e, de fato, isso aconteceu. Eu já tinha 29 ou 30 anos quando engravidei e resolvi fazer um vestibular e passei para filosofia. Tem filósofos que você adora ler, mas não necessariamente concorda com eles. Platão é um deles para mim. Eu acho muito interessante não ter que ficar seguindo a doutrina de ninguém, filosoficamente falando. Porque, na verdade, filosofia não tem resposta, só tem perguntas. E o bom é isso: estar sempre perguntando e não perder aquele espanto inicial da filosofia de estar sempre renovando seu olhar e não se contentar com o que é dado.

LITERATURA, UMA COMPANHIA

Falo muito para os meus filhos: “Se você consegue ficar com você mesmo, isso já é uma grande salvação da dificuldade que todos temos com a vida, com a existência”. O principal é conseguir ficar bem com você e não depender de outra pessoa. E o melhor caminho para isso é ter um bom livro. Então, todas as vezes que eu consigo estar nesse universo, participando de uma história literária que anda paralelamente à minha vida, tudo se torna muito melhor. Porque eu tenho a realidade, que é maravilhosa, terrível e tudo mais, mas eu tenho também a saudade daquela história, daquelas pessoas, daquele universo que vou reencontrar no momento em que eu tiver tempo de pegar meu livro. Quando você entende isso é uma maravilha! Muitas vezes a vida corrida não permite que você tenha tempo e concentração suficientes para, de fato, ter esse encontro contínuo com a boa literatura. Muitas vezes você é sugado pela rotina, está cansado à noite e quer ver uma série, um filme ou qualquer coisa que descanse a sua cabeça. Porém, quando é possível ter essa concentração e esse tempo necessários, nada é melhor que a literatura. Você não precisa de mais nada.

FIM OU (RE)COMEÇOS? 

Acho que a minha relação com a finitude é como a de todos nós: não queremos a finitude. Ao mesmo tempo, seria insuportável não haver finitude. Ou seja, essa é uma contradição: viver eternamente seria uma angústia mas, ao mesmo tempo, a vida passa tão rápido. Quando escrevi a monografia da graduação em filosofia, falei sobre o “eterno retorno” [teoria do filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900) que diz que tudo já existiu e tudo voltará a existir, ou seja, cada instante retorna infinitas vezes] e não é à toa que essa coisa do tempo coexistente me afeta tanto. Não é à toa que a peça tem essa estrutura cíclica. Ela não é linear. Porque me interessa essa ideia, que também existe na física quântica, de que a vida não é exatamente tão linear assim como nos fizeram acreditar. Quero acreditar que há algo maior do que isso, entende? Que não há só essa dimensão, mas várias dimensões, e que existem sutilezas nisso. Pensar na possibilidade de que pode existir uma coexistência no tempo e que espiritualmente isso é muito interessante também. Eu não tenho religião nem sou uma pessoa ligada a dogmas, mas eu me interesso por todas, assim como me interesso por todos os filósofos, mesmo aqueles que não têm tanto a ver comigo, como Kant – ainda assim, tem coisas geniais da obra dele que ficaram em mim [Immanuel Kant (1724-1804) foi um filósofo alemão, fundador da “filosofia crítica”, sistema que buscou determinar os limites da razão humana]. Eu gosto de garimpar nas religiões e nas filosofias a minha visão de mundo. Não tenho uma visão concreta, fechada, pelo contrário, sempre tento entender mais e melhorar a mim mesma, meu olhar e tudo mais sobre a vida. Quero deixar esse conceito (de finitude) em aberto, para não ser tão terrível a existência.

DIMENSÕES DA ARTE 

A arte te tira desse real e te dá outras dimensões. A gente, às vezes, fica com essa visão muito chapada da realidade, com as suas necessidades imediatas de trabalho, de ganhar dinheiro, de cuidar dos filhos…Você está sempre numa gincana muito prática, mas, a partir do momento em que você entra no teatro, abre um livro, vê um filme, ouve uma música, é como se os seus sentidos se alargassem. Como se você pudesse ter o alívio de sair dessa vida prática para uma vida sensorial e enxergar outras formas de viver. Às vezes é um insight, assim como na filosofia, uma frase que você escuta e que muda tudo. Às vezes é uma música que você escutou e aquilo te invadiu num dia, no carro, e mudou seu dia. Assim como quando você vai ao teatro: se sair com reflexões dali, ou se aquilo de alguma maneira te tirar da realidade positivamente, se aquilo te fizer pensar outros ângulos ou, simplesmente, te der um prazer momentâneo…Porque você pode até não sair refletindo, mas se durante uma hora você puder sair de si um pouco, descansar de si mesma, já é tão bom, né? 

FILOSOFIA DE CABECEIRA

Beauvoir Presente, de Julia Kristeva

Edições Sesc São Paulo (2019)

Nesta obra, a autora se debruça sobre a atualidade da escritora e filósofa francesa Simone de Beauvoir, que marcou a metade do século 20 com a publicação de O segundo sexo, um tratado sobre a condição das mulheres no período. 

Mutações: Entre Dois Mundos, Adauto Novaes (org.)

Edições Sesc São Paulo (2017) 

Este livro, que retoma os temas discutidos ao longo de 30 anos de conferências realizadas por Adauto Novaes, traz ensaios que refletem sobre as mutações que o tempo proporciona, delineando a confluência entre um mundo que definha e outro que ainda não começou.

A Aventura de o Método e Para uma Racionalidade Aberta, Edgar Morin

Edições Sesc São Paulo (2020)

A aventura do método sintetiza a trajetória intelectual de Edgar Morin. A imagem simbólica do banian – figueira originária da Ásia tropical cujos galhos, ao caírem na terra, transformam-se em novos ramos – remete ao próprio objetivo do método: produzir novas arborescências, distintas e inseparáveis do eixo central do qual saíram.

Ouça aqui trechos da conversa com Cláudia Abreu

A EDIÇÃO DE SETEMBRO/22 DA REVISTA E ESTÁ NO AR!

Neste mês, a reportagem principal (Palcos por todos os lados – LEIA AQUI) conta como espaços não convencionais, como hospitais, barcos, apartamentos e estações de trem, viram protagonistas de espetáculos criados para serem encenados fora do teatro. Esses trabalhos subvertem a lógica da tradicional caixa cênica, fomentam novas narrativas e borram as fronteiras entre artistas e plateia. Conheça, ainda, os destaques da edição 2022 do Mirada – Festival Ibero-americano de Artes Cênicas, que acontece de 9 a 18 de setembro, em Santos (SP).

Além dessa reportagem, a Revista E de setembro/22 traz outros conteúdos: especialistas da área da saúde e do esporte defendem que a escolha da atividade física mais apropriada para cada pessoa pode ser definida com a ajuda do autoconhecimento; entrevista com a antropóloga e historiadora Lilia Schwarcz que propõe um novo olhar para o passado, incluindo outras narrativas e protagonistas na trajetória recente de nosso país; conheça a trajetória de Letieres Leite, maestro baiano cuja sonoridade ancestral ampliou as bases da música afro-brasileira; a jornalista e cofundadora da Agência Pública Natalia Viana é a convidada do Encontros desta edição e fala sobre os desafios do jornalismo investigativo; conheça projetos arquitetônicos que, com o objetivo de pautar a sociedade e a vida coletiva, refletem os desafios da cidade contemporânea; depoimento da atriz e roteirista Cláudia Abreu, que esteve em cartaz no Sesc 24 de Maio, em julho, com o monólogo Virginia, de sua autoria – sobre a obra da escritora britânica Virginia Woolf; artigos de Fernanda Kaingáng e André de Paiva Toledo refletem sobre conceito, história e questões jurídicas da biopirataria, que consiste na exploração ilegal da biodiversidade e dos saberes tradicionais associados a ela; na seção literária, texto do psicanalista e escritor Caio Garrido sobre os dilemas existenciais de um bebê nascido em maio de 2020; o Almanaque desta edição dá seis dicas de lugares em São Paulo para desconectar da cidade, olhar para dentro de si e relaxar.

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